LORENA MÁRCIA NASCIMENTO CARDOSO A CRIANÇA ABRIGADA E A SUA FAMÍLIA: MARCAS E TRAJETÓRIA SALVADOR 2014 UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR SUPERINTENDÊNCIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA LORENA MÁRCIA NASCIMENTO CARDOSO A CRIANÇA ABRIGADA E A SUA FAMÍLIA: MARCAS E TRAJETÓRIA Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, como requesito parcial à obtenção do título de Mestre. Orientadora: Profa. Dra. Ana Cecília Sousa Bittencourt Bastos SALVADOR 2014 UCSal. Sistema de Bibliotecas C268 Cardoso, Lorena Márcia Nascimento. A criança abrigada e a sua família: marcas e trajetória/ Lorena Márcia Nascimento Cardoso. – Salvador, 2014. 114 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica do Salvador. Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação. Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea. Orientação: Profa. Dra. Ana Cecília Sousa Bittencourt Bastos. 1. Abrigamento – Criança 2. Família – Criança Abrigada I. Título. CDU 159.922.7:316.356.2 Dedico este trabalho a todos aqueles que fazem de sua vida um presente para o outro. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a Deus, pela dádiva da vida e por me permitir enxergar além de um universo de aparências. À minha mãe, Elisabethe, minha melhor amiga, pelo exemplo, apoio e amor incondicional. Ao meu amor, Henrique, companheiro de todas as horas, presente em todos os meus sorrisos e em todos os meus momentos. À minha querida Tia Ione, uma segunda mãe, que sempre me incentiva e acompanha. Aos meus irmãos, Thiago, Pablo e Michelângelo, que cada um ao seu jeito, faz parte da minha história. Às crianças da minha vida, Bianca, Marcos, Eduardo, João e Miguel, cuja lembrança do sorriso e do abraço caloroso foi um bálsamo nos momentos de inquietação. À minha orientadora, Professora Doutora Ana Cecília Bastos, por ter sido a minha orientadora suficientemente boa, que acreditou no meu projeto e embarcou comigo nessa jornada, e na doçura que lhe é peculiar, me apontou caminhos e foi o meu apoio em todas as etapas da minha pesquisa. Sou grata por todos os ensinamentos que você me presenteou. À Professora Doutora Elaine Rabinovich, pelo carinho, profissionalismo e cuidado para comigo e com a minha pesquisa. À Professora Doutora Vanessa Cavalcanti, pela disposição e carinho em compartilhar aprendizados, “olhares, pontes e sapatos” que foram além desse estudo. À Professora Lia Lordelo, que acolheu a minha pesquisa e muito contribuiu para a sua construção. A todos os professores e funcionários do Programa de Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador. Aos meus colegas do mestrado que caminharam ao meu lado nessa busca apaixonante ao conhecimento, dividindo angústias, vivendo sonhos e somando experiências, em especial, Ariadne Cruz, Bárbara Pontes, Joana Darc, Marília Amorim, Mirna Rosier e Priscila Colombo, que sempre foram mais que colegas. Aos grupos de pesquisa, Família, (auto)biografia e poética (UCSAL) e Núcleo de Estudos sobre Desenvolvimento e Contextos Culturais (UFBA), pela convivência e aprendizado compartilhado. À psicóloga Ana Calmon, pelo profissionalismo, confiança e apoio. À Instituição de Acolhimento que abrigou a minha pesquisa e permitiu que tudo isso fosse possível. Às crianças com as quais tive o privilégio de conhecer academicamente nesse estudo e que juntas travamos batalhas subjetivas, confrontamos monstros e bruxas e saímos fortalecidos. Espero que tenham muitos dias de primavera no jardim encantado de vocês. Às “Crianças Perdidas da Terra do Nunca”, que estão crescendo quase invisíveis nos abrigos espalhados pelo Brasil, e que sempre foram a base do meu estudo. A voz de vocês precisa ser ouvida! Ao presente mais lindo que poderia ganhar, meu Daniel, que ainda dentro da minha barriga, foi o meu companheirinho de escrita e fez crescer ainda mais a minha responsabilidade cidadã e profissional para com as nossas crianças. A todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização desse trabalho meus sinceros agradecimentos. O olhar ausente daquele menino... O pedido feito a seco... Onde será que ficou a sua infância perdida? Que terrível personagem se materializou E invadiu o seu castelo encantado? Por quantos caminhos ele terá de percorrer Para encontrar o seu tesouro? Por quantos jardins secretos ele se sentará sozinho Na companhia solitária de suas lágrimas Quando, à noite, não consegue dormir? Quantas crianças invisíveis Gritarão para tantos ouvidos surdos Até se cansarem e se perderem de si? Não sei... Mas o meu ouvido não é surdo E o meu olhar não é cego! E nesse labirinto caminharei, Combateremos lado a lado, E quem sabe, juntos, Venceremos os monstros do passado E avistaremos novos dias de primavera Que estão por vir. Lorena Cardoso CARDOSO, Lorena Márcia Nascimento. A criança abrigada e a sua família: marcas e trajetória. 114f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica do Salvador (UCSAL), Salvador, 2014. RESUMO Esta pesquisa teve como objetivo geral: compreender a percepção que crianças atendidas em abrigos têm em relação ao seu contexto familiar e à sua permanência na instituição e como objetivos específicos: identificar os motivos precipitantes que geraram a condição de abrigo e o perfil psicossocial das crianças em estudo; caracterizar o relacionamento de membros do grupo familiar com a criança e com a instituição durante o período de acolhimento institucional; e analisar a percepção das crianças acerca do abrigo e da sua família de origem. A metodologia foi de natureza qualitativa. Os dados primários foram inicialmente coletados mediante a aplicação de um roteiro de entrevista semi-estruturado que contemplou perguntas fechadas e abertas, denominado Inquérito Situacional com o profissional de psicologia do abrigo, no qual foram colhidas informações sobre a criança, a sua família, os motivos que geraram o encaminhamento para o abrigo e ações da instituição no acompanhamento das crianças em estudo. Em um segundo momento, foi realizada individualmente uma entrevista lúdica semi-estruturada com as crianças participantes, em que foram abordados os seguintes itens: o contexto familiar, a sua acolhida e permanência no abrigo e as suas perspectivas em relação à situação em que a criança se encontra. Essa entrevista teve o formato de um livreto de atividades, intitulado “Ei, estamos aqui!”. Para a obtenção dos dados complementares foram utilizados os prontuários e pastas de encaminhamento e a observação participante. Fazendo um paralelo à condição dessas crianças abrigadas foi feita uma conexão dessa realidade com a perspectiva teórica do modelo bioecológico do desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner. Os resultados aqui alcançados, por refletirem a realidade advinda das crianças, possibilitará o avanço nas discussões, pesquisas e estratégias de enfrentamento para uma melhor adequação dos serviços de acolhimento institucional. Palavras-chave: Abrigamento; Criança; Família. CARDOSO, Lorena Marcia Nascimento. The sheltered child and your family: brands and trajectory. 114f. Dissertation (Master) - Graduate Program in Family in Contemporary Society, Catholic University of Salvador (UCSAL), Salvador, 2014. ABSTRACT This research had as general objective: understand perceptions of children served in shelters have in relation to their family background and their stay in the institution and specific objectives: to identify the precipitating reasons that led to the condition of the shelter and psychosocial profile of children in study; characterize the relationship of the family members with the child and with the institution during the period of institutional care; and analyze the perception of children about the shelter and its family of origin. The methodology was qualitative in nature. The primary data were initially collected by applying a semi-structured interview guide that included open and closed questions, called Situational Survey with professional psychology shelter, in which information was collected about the child, his family, and the reasons that generated the referral to the shelter and actions of the institution in the monitoring of children studied. In a second step, was performed a semi-structured individual interviews with the participants playful children, in which the following items were addressed: family background, your welcome and stay at the shelter and their perspectives on the situation in which the child is. This interview took the form of a booklet of activities entitled "Hey, we're here." To obtain additional data records and the routing folders and participant observation were used. Paralleling the condition of these sheltered children was made a connection that reality with the theoretical perspective of the bioecological model of human development of Urie Bronfenbrenner. The results achieved here, because they reflect the reality arising of children, allow the advancement in discussions, research and coping strategies to better target the residential care services. Keywords: Sheltering; child; Family. LISTA DE FIGURAS Figura 1: Motivos desencadeadores para o acolhimento no abrigo. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ........................................................... 54 Figura 2 - Situação das crianças quanto a serem visitadas por familiares. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ........................................................... 57 Figura 3 - A criança abrigada e seu contexto, conforme o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano. .............................................. 71 LISTA DE GRÁFICOS, QUADROS Quadro 1 - Acolhimento Institucional: duração e reincidência. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ........................................................................... 53 Quadro 2 - Problemas de saúde apresentados pelas crianças. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014 ............................................................................ 56 Quadro 3 - Convivência com outras crianças e com funcionários/cuidadores. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ............................................................ 59 Quadro 4 - Comportamentos emitidos pelas crianças quando abrigadas, conforme registros da instituição. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. . 60 Quadro 5 - Composição familiar na percepção das crianças. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ........................................................................... 63 Quadro 6 - Coisas que a criança sabe e quer contar sobre a sua família. crianças, Salvador, Bahia, 2014. ............................................................ 66 Quadro 7 - Dúvidas da criança em relação à sua família. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ........................................................................................... 68 Quadro 8 - A criança gosta de ficar no abrigo? 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ...................................................................................................... 73 Quadro 9 - Preferências das crianças. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ............. 74 Quadro 10 - A criança sente culpa por estar abrigada? 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. ........................................................................................... 76 LISTA DE SIGLAS Art. Artigo DSM Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ECA Estatuto da Criança e do Adolescente FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada MDS Ministério do Desenvolvimento Social ONGs Organizações Não Governamentais PNCFC Plano Nacional de Promoção e Defesa do Direito da Criança e Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária PPCT Pessoa, Processo, Contexto e Tempo TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UCSAL Universidade Católica do Salvador SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................. 14 1 INFÂNCIA: CONCEITO E LUGAR .............................................................. 17 1.1 A CRIANÇA DESCARTÁVEL: UM CAMINHAR PELA HISTÓRIA E PESQUISAS ................................................................................................. 19 1.2 TRAJETÓRIA DA ASSISTÊNCIA ÀS CRIANÇAS ABANDONADAS NO BRASIL ......................................................................................................... 24 2 A FAMÍLIA VULNERÁVEL: FRAGILIDADES, VIOLÊNCIAS E RUPTURAS .................................................................................................. 27 3 O ABRIGO: DA PROTEÇÃO À INSTITUCIONALIZAÇÃO ......................... 32 4 DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA ABRIGADA: UM OLHAR BIOECOLÓGICO ......................................................................................... 38 5 OBJETIVOS DA PESQUISA ....................................................................... 43 5.1 OBJETIVO GERAL ....................................................................................... 43 5.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ........................................................................ 43 6 MÉTODO ...................................................................................................... 44 6.1 PARTICIPANTES ......................................................................................... 46 6.2 DESCRIÇÃO DO LOCAL ............................................................................. 47 6.3 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS ............ 48 6.4 TRATAMENTO E ANÁLISE DOS DADOS ................................................... 49 6.5 ASPECTOS ÉTICOS E ANÁLISE DE RISCOS E BENEFÍCIOS .................. 50 7 RESULTADOS E DISCUSSÃO ................................................................... 51 7.1 OS ANJOS, DE ONDE VÊM? ...................................................................... 51 7.2 A FAMÍLIA DOS “SEM” FAMÍLIA: HISTÓRIAS FAMILIARES DAS CRIANÇAS ABRIGADAS ............................................................................. 62 7.3 MEU ENDEREÇO, O ABRIGO ..................................................................... 72 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 78 REFERÊNCIAS ............................................................................................ 83 APÊNDICES ................................................................................................. 89 APÊNDICE A – INQUÉRITO SITUACIONAL ............................................... 89 APÊNDICE B: ENTREVISTA LÚDICA PARA CRIANÇA .............................. 91 APÊNDICE C - TERMOS DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .......................................................................................... 109 14 INTRODUÇÃO No Brasil, mais de 30 mil crianças e adolescentes vivem em 2.247 entidades de acolhimento institucional, de acordo com o relatório apresentado pela Comissão da Infância e Juventude do Conselho Nacional do Ministério Público, referente ao período de março/2012 a março/2013. Esse quadro é mais grave do que indicam os números, na medida em que se percebe que a realidade de estadia nas casas de passagem varia significativamente, pois muitas crianças não são retiradas dessas instituições, seja por questões burocráticas ou por dificuldade de inclusão em uma família adotiva; muitas delas acabam permanecendo na casa de passagem até findarem a adolescência. Nesse contexto, deve ser considerado que a separação da criança do convívio com o seu grupo familiar, seguida de institucionalização, pode repercutir negativamente sobre seu desenvolvimento, sobretudo quando não for acompanhada de cuidados adequados, administrados por um adulto com o qual possam estabelecer uma relação afetiva estável, até que a integração ao convívio familiar seja viabilizada novamente. Diante de tal realidade, a realização dessa pesquisa, vinculada ao curso de mestrado acadêmico no Programa de Pós-graduação em Família na Sociedade Contemporânea, da Universidade Católica do Salvador, UCSAL-Bahia, encontra sua justificativa face ao alcance social de uma realidade que é dramática, e pela necessidade de analisar os motivos que conduzem à institucionalização da criança. O processo de institucionalização, entre outras consequências conhecidas, produz um contingente de crianças e adolescente muitas vezes ignorados pela sociedade, envoltos em uma condição socioeconômica e psíquica desprivilegiada e insalubre. Se buscarmos na literatura (apresentada em uma próxima seção) e nos índices relacionados com os muitos motivos desencadeadores do processo de institucionalização da criança perceberemos, embora tais motivos componham um leque variado, a presença da violência ou do abandono é um ponto comum nas diversas histórias de que se tem registro. 15 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê o encaminhamento para casa de passagem como uma medida de proteção; contudo, esses abrigos acabam não atendendo de forma satisfatória as necessidades afetivas de seus internos, negando a estes a compreensão dos motivos que os levaram até o abrigo. O regaste da sua história familiar, nesse contexto, com o passar do tempo acaba ficando inacessível para os internos. Essa condição pode potencializar o efeito de vivências traumáticas, além de criar um sentimento de não pertencer, que pode ser um elemento dificultador na reintegração desses menores a suas famílias de origem ou na inserção em uma família substituta. Muitos estudos já foram e estão sendo realizados no que tange à temática de abandono, violência e institucionalização de crianças e adolescentes. No entanto, observa-se a existência de uma lacuna no que tange ao atendimento/acompanhamento dessas pessoas, é como se a regra institucional fosse não abordar mais os acontecimentos que desencadearam o afastamento da família de origem, é como se ficasse implícito que, ao dar entrada nessas instituições, o tempo se encarregará de sanar os sofrimentos e traumas experienciados, que o entendimento da história de origem é por espontaneamente desenvolvido; é como se o processo de ressignificação do sistema familiar fosse automático, onde a substituição subjetiva da família de origem por uma família substituta fosse apenas uma questão burocrática. Evidenciam-se os aspectos históricos, as condições socioeconômicas, os impactos psicológicos, as dificuldades de inclusão, a permanência prolongada, a jurisprudência, as possibilidades e dificuldades da adoção. No entanto, há uma lacuna nesses estudos que não contemplam a concepção da criança no que tange ao seu processo de afastamento familiar – nesse lugar, elas raramente são ouvidas. Quando suas histórias familiares tornam-se inacessíveis, os seus dramas tendem a ser negligenciados, e esse quadro se torna um forte componente em um processo em que essas crianças são esquecidas enquanto sujeitos. No primeiro capítulo, apresentaremos as mudanças ocorridas no conceito de infância e no lugar ocupado pela criança no ambiente social e familiar. Também será feito um caminhar pela história e pesquisas que retratam a criança descartável em um recorte que contempla a realidade advinda desde o século XVII e que permanece na 16 atualidade. E finalizaremos com a trajetória da assistência às crianças abandonadas no Brasil. No segundo capítulo, discutiremos a família socialmente vulnerabilizada, trazendo para o centro da discussão às suas fragilidades, violências e rupturas. Entender o cotidiano e dificuldades apresentadas por essas famílias permitirá um olhar ampliado acerca das experiências e realidade das crianças que estão inseridas nos serviços de acolhimento em todo o país. No terceiro capítulo, faremos um diálogo com a questão da institucionalização e do abrigamento pautado pelo novo olhar que foi introduzido com a promulgação do ECA, abordando o limiar existente entre a proteção e a institucionalização. Fazendo um paralelo à condição dessas crianças abrigadas, no quarto capítulo, faremos uma conexão dessa realidade com a perspectiva teórica do modelo bioecológico do desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner (1977, 1989, 1996) e, particularmente, destacaremos as relações existentes entre o ambiente familiar e institucional e o desenvolvimento da criança em situação de abrigamento. Logo após, apresentaremos os objetivos da pesquisa e a metodologia utilizada, abordando o método, instrumentos e procedimentos utilizados, bem como a caracterização dos participantes e da instituição loco da pesquisa. Em seguida, explicitaremos nossos resultados e discussões. E finalizaremos tecendo algumas reflexões, nas considerações finais, com as nossas leituras e perspectiva acerca da realidade que nos foi apresentada. Acreditamos que este trabalho possibilitará o avanço nas discussões bem como poderá subsidiar novas pesquisas e políticas públicas que busquem implementar um olhar diferenciado para as muitas crianças que estão vivendo em instituições de acolhimento no nosso país. 17 1 INFÂNCIA: CONCEITO E LUGAR Diferentemente da crença do senso comum, a concepção da infância como um período peculiar do desenvolvimento humano não é um sentimento natural ou inerente à condição humana, visto que esse entendimento muda a cada tempo histórico e em cada contexto social. Na atualidade, a criança ocupa um espaço abrangente na vida familiar; todavia, essa socialização não fazia parte da realidade anterior ao século XIX, visto que nesta época “a passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade” (ARIÈS, 1981 p.10). De acordo com Ariès (1981), havia um sentimento superficial direcionado à criança em seus primeiros anos de vida, denominado pelo autor como “paparicação”, onde a criança era vista como uma “coisinha engraçadinha”, que, como um passatempo, divertia os adultos; no entanto, diante da fragilidade da sua existência e das constantes mortes ainda nessa idade, muitas não saíam de uma espécie de anonimato, e ao morrerem eram logo substituídas. Em suas palavras: A vida da criança era então considerada com a mesma ambiguidade (sic) com que hoje se considera a do feto, com a diferença de que o infanticídio era abafado no silêncio, enquanto o aborto é reivindicado em voz alta – mas esta é toda a diferença entre uma civilização do segredo e uma civilização da exibição. Chegaria um tempo, no século XVII, em que a sage-femme, a parteira, essa feiticeira branca recuperada pelos Poderes públicos, teria a missão de proteger a criança, e em que os pais, melhor informados pelos reformadores, tornados mais sensíveis à morte, se tornariam mais vigilantes e desejariam conservar seus filhos a qualquer preço. (ARIÈS, 1981 p.18). Foi no século XVII que um sentimento de infância começou a ser esboçado, sendo introduzidas expressões para designá-la, anunciando um sentimento romântico do século XVIII, que, com o surgimento do malthusianismo e a extensão das práticas contraceptivas, foi modificando a ideia de perda inevitável (ARIÈS, 1981). Nos séculos XIX e XX, emergia um sentimento novo que retratava um interesse dos pais pelos seus filhos, principalmente nas questões relacionadas com a educação. 18 A família começou então a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância, que a criança saiu de seu antigo anonimato, que se tornou impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor, que ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes, e que se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela. (ARIÈS, 1981 p.12). Mas, foi no “final do século XX que a infância tornou-se uma questão candente para o Estado e para as políticas não governamentais, para o planejamento econômico e sanitário, para legisladores, psicólogos, educadores e antropólogos, para a criminologia e para a comunicação de massa” (LEITE, 1997 p. 17 In FREITAS, 1999). Para Silveira (2000), a definição de infância está ligada à ótica do adulto e, como a sociedade está sempre em movimento, a vivência da infância muda conforme os paradigmas do contexto histórico. Outra abordagem feita pela autora é a da importância da criança dentro de uma comunidade, enfatizando que esta varia conforme o período em que ela está inserida, seus direitos e interferências que têm em diferentes momentos. Assim, cada período imprime sobre o fenômeno da infância uma significação mais ou menos vinculada às condições sociais e não apenas à sua condição de ser vivente e biológico. Num enfoque da atualidade, a autora acima expõe que, através dos meios de comunicação e de sua narrativa, as crianças e os adultos "aprendem" o que é ser criança e o que devem consumir para isto. Desta forma, tem-se a influência de um artefato social na construção da significação da infância. Com as novas demandas da sociedade atual, a criança passou a usufruir de um status diferenciado, além de começar a ter os seus direitos legitimados. Ao ser melhor entendida em sua condição de ser em desenvolvimento, ela também foi incluída no rol de consumidores em potencial. A infância passou a ser objeto de desejo dos segmentos econômicos que visualizam no público infantil um espaço aberto para a criação de novas necessidades de consumo rápido, bem como de um novo modo de ser criança, pautado na aquisição de bens materiais e serviços e na inserção precoce no mundo tecnológico, gerando novos padrões de relacionamentos e inserção social. A evolução da sociedade e do papel da criança na mesma, dentro da ótica da democratização dos vínculos familiares e da sociedade de consumo, fez com que a criança emergisse como alvo quer da publicidade, quer de uma autonomia e poder anteriormente 19 inimagináveis, quer de uma capacidade de autorreflexão também ainda despercebida.” (RABINOVICH & MOREIRA, 2011 p.35). Para o desenvolvimento global da criança, tem-se a família como elemento de formação. Visto que nesta fase da vida a família representa o contexto do desenvolvimento da criança, em que a necessidade do outro para processos de individuação é ampliada, devido à imaturidade física e à competência social para a interação com os parceiros encontrar-se em fase de aquisição, é necessário atentar para os diferentes tipos de concepções e arranjos de família com o meio socioeconômico e histórico (PEREIRA, LIRA & PEDROSA, 2011). A evolução no conceito de infância e o reconhecimento desta como um ser em desenvolvimento, possibilitou o pensar em políticas públicas que visem a proteção integral da criança, o que também reflete nas ações direcionadas ao acompanhamento da sua família. 1.1 A CRIANÇA DESCARTÁVEL: UM CAMINHAR PELA HISTÓRIA E PESQUISAS Quando se aborda a temática do abandono percebe-se que há uma vasta quantidade de estudos relacionados, principalmente ao que tange aos aspectos históricos e sociais do abandono, às condições de abrigamento, aos impactos causados no desenvolvimento e ao processo de adoção. No que tange aos aspectos históricos e sociais do abandono, encontra-se na literatura um recorte que contempla uma realidade advinda desde o século XVII e que permanece na atualidade. Trindade (1999) discutiu algumas questões centrais no estudo da infância e do abandono fazendo um paralelo entre a realidade brasileira e a europeia, sobretudo França e Itália, apresentando as reflexões sobre a infância e o abandono, num período que vai do século XVII ao XIX, perpassando pelas discussões e práticas da filantropia no Brasil, com destaque para o século XIX até a passagem para o século XX. A autora traça uma visão panorâmica do abandono decorrente da organização, cultura e valores de uma sociedade até o início do século XX, A lógica do abandono passa pelo rigor do termo e sua contextualização. No Brasil, desde a colônia até a crise do império, no 20 final do século XIX, a criança abandonada era tratada pelos termos "expostos" e "enjeitados". Esses termos correspondiam ao tipo de abandono mais comum para o período, qual seja, o de recém- nascidos, e se consubstanciavam nas práticas de enjeitar as crianças expondo-as em locais onde seriam, muito provavelmente, recolhidas. Os locais mais comuns eram as igrejas e conventos e, mais tarde, as "rodas dos expostos". (TRINDADE, 1999) Percebe-se que a visão higienista foi uma propagadora de medidas diferenciadas no cuidado de crianças e no ordenamento social, modificando as formas de atendimento e de percepção acerca da infância. Cintra & Souza (2010) apresentam uma análise pautada na leitura histórica e psicossociológica da institucionalização da infância no Brasil e dos atendimentos propostos por essas instituições, observando a qualidade dos cuidados oferecidos no contexto institucional a partir do trabalho do educador social. Foi traçado o percurso histórico de instituições de acolhimento de crianças, antes denominadas de orfanatos no Brasil que eram marcadas por uma tradição de descuido, desleixo e mesmo de violência em relação à população atendida (Freitas, 2006; Priore, 2007; Rizzini, 1993). E que atualmente são intituladas abrigos e que seguem as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) no que compreende o acolhimento institucional como medida excepcional e de caráter provisório no atendimento da população infantil em situação de risco pessoal e social. Cintra e Souza (2010) abordam os mecanismos criados a partir do ECA, como a criação dos Conselhos Tutelares; a consolidação dos educadores sociais (ou cuidadores) que são todos aqueles que trabalham no abrigo; a elaboração do documento de Diretrizes das Nações Unidas sobre o Uso e Condições Apropriadas para Cuidados Alternativos com Crianças (MDS, 2006), visando nortear as ações de atenção à infância em âmbito mundial; o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (MDS, 2007), que dá suporte às ações em nível nacional; o Grupo de Trabalho Nacional Pró Convivência Familiar e Comunitária (Silva & Cabral, 2009) que visa subsidiar a implantação do Plano Nacional. As referidas autoras ressaltam que essas medidas supõem, por um lado, que a atenção ao tema indica a preocupação da sociedade e do poder público para com a criança e que essa atenção, possivelmente, indica a existência de um território em que os problemas são muitos e as soluções bastante complexas. 21 O referido estudo considera o contexto social que produz a exclusão e a discriminação de crianças (e de suas famílias) concomitantemente à produção de discursos e práticas que objetivam proteger e cuidar dessa população excluída. Dentro da lógica de exclusão presentes no Brasil, discutindo o levantamento nacional realizado em 2003 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA que traçou um perfil dos abrigos para infância e adolescência beneficiados com recursos do Governo Federal, em que 20 mil crianças estão nestas instituições sendo que 86,7% delas têm família; mais de um terço estão abrigadas há um período que varia de dois a cinco anos; 61,3% têm entre sete e quinze anos; do total de crianças abrigadas, 63% são negras. Os motivos mais citados para o abrigamento foram a pobreza (24,2%) e o abandono (18,9%) (IPEA, 2003). As autoras supracitadas fazem uma comparação entre os antigos orfanatos e os atuais abrigos e consideram que há um distanciamento – no tempo e no discurso – entre a realidade destes; no entanto, chama a atenção à semelhança entre os motivos desencadeantes do atendimento de crianças nessas instituições. Os que mais aparecem são abandono e pobreza. Combinada com essa realidade tem-se os problemas da institucionalização, principalmente por períodos prolongados, como por exemplo, a ruptura de laços afetivos, privação do convívio familiar, entraves no desenvolvimento global, impessoalidade nos cuidados, disciplina, controle e punição como premissas educativas (David, 1972; Guirado, 2004; Rizzini e Rizzini, 2004). A estes aspectos acrescenta-se outro, segundo as autoras acima: as crianças abrigadas vivem uma experiência subjetiva de violência, em que se veem pressionadas a se desfazer de seu passado, que passa a ocupar o lugar da inadequação, para assumirem novas características e atenderem a valores naturalizados como adequados. E essa situação se potencializa ao se verificar a pouca efetividade das instituições de abrigamento na reintegração dos laços familiares seja na família de origem ou em uma família substituta. Siqueira e Dell’Aglio (2011), discutem sobre as políticas de garantia desse direito, a partir de programas que visam à preservação e à reinserção familiar, de acordo com a legislação brasileira vigente que busca atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade onde foram criados programas direcionados a esta população mas que ainda são escassos. Evidenciando a importância da construção 22 de mais programas de atenção a esta população e suas famílias e da formação de equipes profissionais capacitadas para este trabalho, efetivando o direito à convivência familiar e comunitária. Assim, tendo em vista a realidade brasileira, é possível perceber o grande desafio que emerge na implementação dessas políticas, onde os programas de preservação e reinserção familiar poderiam ser implementados através do Sistema Único da Assistência Social (Centro de Referência de Assistência Social, 2009), que desenvolve projetos voltados à Proteção Social Especial e que poderiam desenvolver essas ações nos próprios abrigos e também dentro de instituições de saúde, educação ou comunitárias, como postos de saúde, escolas e centros de convivência, possibilitando uma maior integração com a comunidade. De acordo com a análise das autoras, [...] essas ações sistematizadas e realizadas por equipe profissional capacitada poderiam iniciar uma grande mudança no cenário da assistência Social brasileira, fortalecendo as famílias, evitando longos períodos de institucionalização e contribuindo para a formação de cidadãos capazes de reivindicar seus direitos sociais, garantindo a convivência familiar e comunitária (SIQUEIRA E DELL’AGLIO, 2011). Lázaro (2005), considerando o caso da adoção tardia, apresenta uma reflexão acerca das questões referentes ao abandono e à adoção de crianças e adolescentes que deveriam ocupar um espaço maior na esfera da política social brasileira. É feita uma conexão desde a criação da roda dos expostos, instrumento utilizado para facilitar a entrega das crianças por suas mães ocultando a identificação da progenitora, como o que oficializou e institucionalizou o abandono no Brasil. Também retrata a fundação de instituições-abrigo de níveis federal e estadual, como por exemplo, a FUNABEM e a FEBEM, que degradaram ainda mais a situação das crianças e adolescentes abandonados que passaram por processos de subjetivação extremamente comprometedores. O autor teve como ponto de partida o trabalho com o Grupo de Apoio aos Pais Adotivos, onde ele discute os mitos, medos e expectativas detectadas no grupo e que tem influência negativa no processo de preparação dos casais e famílias, tanto para a adoção como para o momento da revelação do ato de adoção. Nesse estudo, é enfatizado o processo de adoção tanto ao que se refere ao aspecto legal quanto ao aspecto psicossocial das crianças, das famílias e dos abrigos. Soejima e Weber (2008) fazem um levantamento dos motivos que desencadeiam o abandono e discute à condição da genitora e os estereótipos relacionados a essa mãe bem como as suas experiências familiares. As autoras fazem 23 a sua pesquisa com um universo de vinte e uma mães que abandonaram um ou mais filhos, as quais constituíram o Grupo 1 (G1), assim como 21 mães que não abandonaram seu(s) filho(s), componentes do Grupo 2 (G2). O G2 foi disposto a partir da indicação dessas mães pelas entrevistadas do G1. Utilizou-se o critério de indicação das mães do G2, visando à proximidade e certa vinculação com as mães que abandonaram (G1), tentando manter, desta forma, semelhanças entre elas, sejam referentes à situação socioeconômica e familiar. A cada mãe abandonante entrevistada foi solicitado que a mesma apontasse uma mãe, próxima a ela, objetivando a manutenção da pesquisa. Ambos os grupos compuseram uma amostragem de conveniência e não uma amostra estratificada, frente à impossibilidade de obtê-la, devido à peculiar característica da pesquisa e seus sujeitos. A pesquisa realizou-se em duas cidades do Sul do país e as entrevistas aconteceram em locais escolhidos pelas entrevistadas. Foram utilizadas as Escalas de Qualidade de Interação Familiar (EQIF) que analisam e avaliam interações familiares e práticas parentais (Weber, Brandenburg & Viezzer, 2003; 2006a; 2006b) dentro das seguintes dimensões: Relacionamento Afetivo; Envolvimento; Regras; Reforçamento; Punições Inadequadas; Comunicação Positiva por Iniciativa dos Pais; Comunicação Positiva por Iniciativa dos Filhos; Comunicação Negativa; Clima Conjugal Positivo; Clima Conjugal Negativo; Modelo Parental e Sentimentos dos Filhos. Os resultados confirmaram o histórico de abandono, negligência, violência e dificuldades nos relacionamentos familiares no Grupo 1 enquanto que os resultados do Grupo 2 demonstraram uma vivência mais positiva no meio familiar, o que remete à repetição da prática do abandono ao longo da história e a constatação da pouca efetividade das práticas de assistência e acolhimento tanto para criança em condição de abrigo quanto para a mãe que abandona. Oriente e Sousa (2005) abordaram o significado do abandono para as crianças institucionalizadas, a partir de análise documental, entrevistas semi- estruturadas, observações participantes com cinco crianças entre sete e onze anos de idade, sendo duas do sexo feminino e três do sexo masculino, que se encontram em uma instituição de abrigo da cidade de Goiânia (GO). Foram utilizados os fundamentos da psicologia histórico-cultural de Vigotsky como aspecto norteador da pesquisa, seguindo os princípios epistemológicos desenvolvidos por Gonzalez Rey. 24 Com base nessa investigação realizada, três categorias de significados se evidenciaram: a invisibilidade, a transgressão e os vínculos afetivos. As autoras constataram na pesquisa que a “voz” das crianças é marcada pela invisibilidade e que raramente alcança os dirigentes das instituições, apontando para a necessidade de se pensar políticas públicas para além da perspectiva adultocêntrica, visando melhorar o atendimento das crianças que estão em condição de abrigo. Os estudos citados acima exemplificam os diferentes olhares que são dados à situação das crianças que estão sendo acolhidas em casas de passagem/abrigos. Tanto os estudos acadêmicos como os levantamentos do governo geraram e geram dados importantes para se pensar o atendimento direcionado a essas crianças, as famílias e estruturação das instituições responsáveis. 1.2 TRAJETÓRIA DA ASSISTÊNCIA ÀS CRIANÇAS ABANDONADAS NO BRASIL No Brasil, a trajetória da assistência às crianças abandonadas teve inicio com a própria colonização. A Câmara Municipal tinha a obrigação de buscar meios para possibilitar a criação de uma criança quando os pais ou os parentes não assumiam a responsabilidade. Todavia, nesse período tanto o Estado quanto a Igreja não assumiram diretamente a assistência à essas crianças, atuando indiretamente no que tangia o controle legal e jurídico, apoios financeiros esporádicos. Diante desse cenário, foi a sociedade civil, organizada ou não, que se enterneceu com a sorte da criança abandonada pela família (MARCÍLIO, 2006). Quando se fala da assistência à infância abandonada no Brasil, têm-se três fases distintas: A primeira fase, de caráter caritativo, estende-se até meados do século XIX. A segunda fase – embora mantendo setores e aspectos caritativos – evoluiu para o novo caráter filantrópico, e está presente, a rigor, até a década de 1960. A terceira fase, já nas últimas décadas do século XX, surge quando se instala entre nós o Estado do Bem- Estar Social, ou o Estado-Protetor, que pretende assumir a assistência social da criança desvalida e desviante. Só a partir dessa fase, a criança tornou-se, na lei, sujeito de Direito, partícipe da cidadania. (MARCÍLIO, 2006 p. 132). Abordar a situação da infância brasileira é conduzir por nuances e recortes de uma realidade desigual e fragilizada. Sabe-se que crianças de diferentes classes 25 sociais vivenciam situações de violência, abuso e negligência, todavia, quando se remete à população de baixa renda, esta problemática se agrava, pois o baixo poder aquisitivo também está associado à dificuldade de acesso à saúde, educação e moradia, trabalho infantil, proximidade com práticas ilícitas e privações. Como afirma Del Priore (2007, p.7), As crianças brasileiras estão em toda parte. Nas ruas, à saída das escolas, nas praças, nas praias. Sabemos que seu destino é variado. Há aquelas que Estudam, as que cheiram cola, as que brincam, as que roubam. Há aquelas que são amadas e, outras, simplesmente usadas. Seus rostinhos mulatos, brancos, negros e mestiços desfilam na televisão, nos anúncios da mídia, nos rótulos dos mais variados gêneros de consumo. (DEL PRIORE, 2007 p.7) Sendo assim, na dicotomia social que envolve essa etapa da vida, nota-se a existência de dos mundos pertencentes às crianças, o mundo ideal e o mundo real. Alguns transitam entre os dois mundos, ora protegidos ora conduzidos por uma rotina não condizente às suas possibilidades de desenvolvimento e outros, uma boa parcela das crianças brasileiras, são atropeladas diariamente em demandas e situações que comprometem a própria condição de ser criança. O mundo que “a criança deveria ser” ou “ter” é diferente daquele onde ela vive, ou no mais das vezes, sobrevive. O primeiro é feito de expressões como “a criança precisa”, “ela deve”, “seria oportuno que”, “vamos no engajar em que”, até o irônico “vamos torcer para”. No segundo, as crianças são enfaticamente orientadas para o trabalho, para o ensino, para o adestramento físico e moral, sobrando-lhes pouco tempo para a imagem que normalmente a ela está associada: do riso e da brincadeira. No primeiro, habita a imagem ideal da criança feliz, carregando todos os artefatos possíveis de identificá-la numa sociedade de consumo: brinquedos eletrônicos e passagem para Disneylândia. No segundo, o real, vemos acumularem-se informações sobre barbárie constantemente perpetrada contra a criança, barbárie esta materializada nos números sobre o trabalho infantil, sobre a exploração sexual de crianças de ambos os sexos, no uso imundo que o tráfico de drogas faz dos menores carentes, entre outros.” (DEL PRIORE, 2007 p.8-9) O registro de violência e descaso com a infância no Brasil se refere a uma problemática antiga que se confunde com a sua própria história. Já tem registro desde as embarcações lusitanas do século XVI, onde crianças também estiveram presentes à epopeia marítima e que por sua condição vivenciavam todo tipo de violência e muitas não sobreviviam. Ramos (2007) faz uma reflexão acerca desta realidade das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI com o destino ao Brasil e ele diz que, 26 As crianças subiam a bordo somente na condição de grumetes ou pagens, como órfãs do Rei enviadas ao Brasil para se casarem com os súditos da Coroa, ou como passageiros embarcados em companhia dos pais ou de algum parente. Em qualquer condição, eram os “miúdos” quem mais sofriam com o difícil dia-a-dia em alto mar. A presença de mulheres era rara, e muitas vezes, proibida a bordo, e o próprio ambiente nas naus acabava por propiciar atos de sodomia que eram tolerados até pela Inquisição. Grumetes e pagens eram obrigados a aceitar abusos sexuais de marujos rudes e violentos. Crianças, mesmo acompanhadas dos pais, eram violadas por pedófilos e as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas cuidadosamente a fim de manter-se virgens, pelo menos, até que chegassem à Colônia.” (RAMOS, 2007 p.19) Os registros dos mais diversos tipos de violência e abusos contra as crianças no Brasil perpassam por todo o seu período histórico, da época do Brasil Colônia à contemporaneidade. No entanto, apesar da evolução do olhar e das práticas direcionadas a esse grupo, os casos de violência, abuso e negligência continuam constantes no dia-a-dia e as políticas públicas em vigor no país não dão conta de combater efetivamente esta realidade. 27 2 A FAMÍLIA VULNERÁVEL: FRAGILIDADES, VIOLÊNCIAS E RUPTURAS A família pode ser entendida como sendo um ambiente tanto físico (quando se consideram laços sanguíneos, patrimônio, juridicidade, etc.) quanto psicológico (pertencimento, desenvolvimento de selves, formação de identidade, vínculos, ajustes e desajustes, e etc.), sendo que o seu funcionamento pode ser observado de acordo com o comportamento, interações e relações estabelecidas pelos seus membros. Para Court (2005, p. 17), a família “é propriamente uma comunidade, posto que o vínculo que une seus membros entre si os envolve na totalidade de seu ser pessoas e com total indeterminação de sua vigência temporal”. Todavia, o referido autor chama atenção para a descrença existente na atualidade acerca da família, em que nem a economia, nem a educação, nem a política esperam da família um apoio essencial em relação ao cumprimento de suas funções, mesmo quando é possível afirmar que as cumprem da melhor maneira quando o contexto familiar procede de modo favorável (COURT, 2005). Em tempos de crise desse sistema se observa que a família participa dos dinamismos próprios das relações sociais, sendo influenciada pelo contexto político, econômico e cultural em que está inserida. A perda de validade de valores, dos modelos da tradição e a incerteza quanto às novas propostas que se apresentam, faz com a família seja desafiada a manter uma convivência com certa fluidez, dentro de uma gama de possibilidades que valorizam a criatividade numa dinâmica do tipo tentativa de acerto e erro (PETRINI, 2005). Sendo assim, a família se organiza em um emaranhado que tanto contribui para o bom desenvolvimento e funcionamento de seus integrantes individual e coletivamente, e para manutenção do próprio sistema, como também pode ser um sistema precipitante de traumas, disfunções e rupturas. Junto com a transmissão da vida, ocorre também na família a transmissão da cultura e da tradição, que tem a mesma fragilidade que a existência humana. Ninguém escolhe onde nascer, nem em que tempo e lugar, nem qual será seu idioma materno. E, sem embargo, ninguém nasce em um mundo desabitado e a ser construído. A família pode moldar-se a partir da vida humana precisamente porque conta com a tradição e experiência de sua cadeia ontogenética (COURT, 2005 p. 23). 28 Logo, falar de família é falar do paradoxo, da ambivalência do positivo e do negativo, do ambiente acolhedor e da violência. Desde o início da vida, nos contatos estabelecidos com os seus familiares e nos reflexos que tais contatos têm na formação da identidade e visão de mundo, o indivíduo vai aprendendo a sobreviver e a atuar, cedendo às pressões, reivindicando espaços, se igualando e também se diferenciando, é no encontro e no confronto que ele vai se reinventando várias vezes na tentativa de estabelecer uma convivência que seja significativa. O significado empregado às experiências vivenciadas no âmbito familiar são imperativos na constituição do mundo subjetivo que refere-se à totalidade complexa da experiência imediata que dinamicamente se modifica, e estabelecem disposições afetivas que configuram o que é familiar, comum, singular, novo, estranho e surpreendente, aparecendo intrínseco nos mais diversos eventos da vida. (Cerveny, 1994, Grandesso, 2006; Valsiner, 2012; Cardoso, Rosier & Colombro, 2013). Além disso, existem “conflitos e tensões” no decorrer de toda a existência da família. Tais conflitos podem ser manifestos ou latentes. A forma de lidar com os conflitos pode variar de modelos autoritários e intolerantes, nos quais predomina um relacionamento adultocêntrico, de opressão e silenciamento dos mais fracos, em geral, as crianças. [...] Pode-se imaginar razões históricas, e elas certamente existem, para a frequência de relacionamentos violentos nas interações dos adultos com as crianças na família, na escola etc. (VICENTE, 2008 p. 54). A convivência nesse grupo é uma relação diferenciada das demais que são construídas ao longo do tempo, visto que os laços familiares podem ser negados e até mesmo rompidos, mas nunca serão inexistentes e mesmo diante de opiniões, atitudes e comportamentos que sejam conflitantes e até mesmo violentos entre os seus membros, percebe-se a tentativa de sustentar essas relações e manter a família como um sistema que tem aspectos positivos e negativos, mas que é essencial para o desenvolvimento humano, tanto nos aspectos físicos quanto psíquico e social. Para De Antoni & Koller (2012, p. 53), A violência existente na família atinge todos seus membros, é severa e frequente em suas manifestações. Os desenvolvimentos físico, emocional, social e moral das pessoas que compõem essas famílias podem estar comprometidos frente às agressões às quais estão expostas. As resoluções adotadas são ineficazes no rompimento desse padrão abusivo estabelecido nas interações. Assim, parece que nesses ambientes não há reciprocidade e equilíbrio de poder em prol da pessoa em desenvolvimento. Aparecem vínculos frágeis e ameaçados constantemente de ruptura. As crianças estão mais vulneráveis a essas agressões, sejam como vítimas ou testemunha, 29 por não conseguirem se defender desse sistema ameaçador e por aprenderem essa forma de interação. Assim, podem reproduzir a violência em outros contextos e perpetuá-la em seus relacionamentos. Os adultos não conseguem restabelecer outras formas de interações e, assim, se tornam algozes e vítimas da sua própria violência. Vale ressaltar que quando os vínculos são estabelecidos de forma segura e o ambiente familiar é considerado como agradável, acolhedor e dinâmico, a família é fortalecida e os seus integrantes são afetuosos, solidários e autônomos, onde se observa a existência de uma rede de auto-regulação e proteção que envolve todo o sistema. As pessoas que desfrutam de uma convivência familiar acolhedora em que suas necessidades básicas (fisiológicas e emocionais) são atendidas de maneira satisfatória, geralmente, apresentam um funcionamento psíquico mais integrado, boas habilidades sociais e são mais assertivas. Sendo a família um universo simbólico que cria mediações próprias para delimitar e nortear o que ela busca dentro de uma perspectiva do vínculo genealógico, torna-se pertinente contemporizar as situações que ligam esse sistema coeso aos casos de violência doméstica que envolvem agressões verbais, abuso emocional, físicos e sexuais, negligência e abandono. No Brasil, há mecanismos jurídicos que buscam a proteção do indivíduo através da normatização das punições e das medidas protetivas perante a ocorrência desse tipo de violência, dentre esses mecanismos têm-se diretamente a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006) de proteção à mulher e de forma mais ampla o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069, de 13 de julho de 1990) e o Estatuto do Idoso (LEI 10.741/2003, de 01 de outubro de 2003) que também contempla esse aspecto. Apesar de existir legislação, os casos de violência familiar continuam em uma crescente, desafiando o poder público e a sociedade, estando presente em todas as classes sociais. Em muitos casos, o repertório familiar para resolver as situações conflitivas não é democrático e ao utilizar o seu acervo pessoal (memória) de procedimentos adquiridos no próprio processo de aprendizagem, às vezes presente na história de vida do pai ou mãe violentos e nos costumes, uma intensificação da conduta destrutiva, em que predomina o ódio, o ressentimento, o abuso e a transgressão (VICENTE, 2008). 30 Andrade (2003) considera que, A violência no Brasil, doméstica ou não, surgiu há muito tempo em nossa história e pode-se afirmar que possui um caráter estrutural: não é localizada, nem esporádica ou passageira. Nasceu com a colonização do território, cresceu com o regime escravocrata e encontra-se arraigada na sociedade até os dias de hoje. Efetivamente, nosso país tem atingido níveis de violência inusitados, levando alguns analistas a caracterizarem tal estado de coisas como verdadeira epidemia, e outros como guerra civil não declarada. Para algumas crianças a família deixa de ter o status de proteção e torna-se um ambiente de exposição, vulnerabilidade e violência (Sani, 2006; Jaffe, Wolfe e Wilson, 1990). Falar da ocorrência de atos de violência dentro da família é caminhar muitas vezes por labirintos permeados de distorções no que cerne o cuidado e a violência imposta pelos cuidadores, que investidos de um suposto poder utiliza-se desse tipo de ação para prevalecer a sua vontade, extravasar as suas angustias, sofrimentos e incapacidades. A criança acaba se tornando também objeto de violência quando elas presenciam agressões físicas e/ou desvalorização das figuras parentais, ameaças, queixas e lamentações reiteradas (Álvaro, 1997 apud Sani, 2006). Esse ambiente permeado pela intimidação acarreta sofrimento emocional à criança que pode se sentir muitas vezes como a culpada pela violência sofrida por um dos seus pais/familiares, e essa culpa tanto pode estar relacionada à sua presença no ambiente quanto a sua incapacidade de interromper a violência. As relações distorcidas, pautadas no abuso de poder, desmerecimento, comunicação e interação inadequada e/ou precária, expectativas irrealistas e pouca tolerância, desencadeiam o sentimento de menor-valia e vão formando crenças centrais negativas onde as vítimas passam a se perceber como sendo uma pessoa não merecedora de estima e amor e que são sempre indesejadas e incapazes. As crenças começam a ser desenvolvidas na infância, à medida em que a criança interage com outras pessoas significativas e passam por situações que confirmem essa ideia, em que pessoas estabelecem entendimentos sobre si mesma, outras pessoas e seus mundos, "suas interações com o mundo e com outras pessoas conduzem a determinados entendimentos ou aprendizagens, suas crenças, as quais podem variar em precisão e funcionalidade" (J. BECK, 1997 p. 31). 31 O ambiente familiar quando visto como insalubre, disfuncional, pode desencadear uma série de psicopatologias como por exemplo a depressão, transtornos alimentares, de humor, de ansiedade e fobias, dificuldade de aprendizagem e até mesmo doenças psicossomáticas. Nesse contexto, De Antoni (2012, p. 37-38) considera que, A família é um espaço que sempre deveria possibilitar a aprendizagem de vivências afetivas como o amor, o respeito, o cuidado, entre tantos outros sentimentos positivos presentes nas relações interpessoais. No entanto, o abuso emocional demonstra que esses valores não estão presentes em todos os momentos do convívio familiar e que os pais podem lidar de forma errônea com os filhos. O autoritarismo (abuso de poder) ou a negligência (falta de afetividade) estão comumente presentes. Mas, independente de qual estilo parental utilizado nas relações familiares, o mais significativo é a interferência no desenvolvimento comportamental da criança (DE ANTONI, 2005). Seja nas relações constituídas pela convivência positiva ou nos ambientes familiares permeados pela violência, a família sempre será um sistema constituinte da identidade. Um olhar sensível às relações familiares permite perceber as virtudes e fragilidades de tal sistema e traçar formas mais adequadas para uma possível intervenção e acompanhamento. Diante das controvérsias envolvidas na identificação das situações que envolvem violência, abusos e negligência, observa-se que os fatores de coesão e permanência presentes na dinâmica familiar consolidam um clima de desajuste onde se institui o silêncio, um pacto nocivo e uma espécie de segredo onde as experiências vividas dentro do sistema familiar são camufladas, justificadas e até mesmo negadas pelo próprio grupo, o que aponta para um aspecto de risco, denotando uma condição negativa que acaba perpetuando os ciclos de violência ao longo do tempo. A intervenção protetiva nesses casos deve, assim, resgatar os afetos através da reconstrução dos padrões de apego dentro de uma rede de apoio social seguro, o que permitirá a ressignificação das experiências vividas, manejo dos traumas, o resgate da autonomia e devolver a confiança em uma vida familiar positiva e geradora de bem-estar. 32 3 O ABRIGO: DA PROTEÇÃO À INSTITUCIONALIZAÇÃO Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei N.° 8.069, de 13 de Julho de 1990, o menor no Brasil passou a ser visto como um ser em formação e detentor de direito, deveres e proteção. De acordo com o Art. 5°, do ECA, “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Assim, visando o superior interesse do menor, o ECA prever o encaminhamento para serviço de acolhimento como uma medida protetiva, de caráter excepcional e provisório, nos casos em que para proteção da integridade física, psíquica e moral, for detectada a necessidade do afastamento da criança e do adolescente da família de origem, os mesmos deverão ser atendidos em serviços que oferecem cuidados e condições favoráveis ao seu desenvolvimento saudável, devendo-se trabalhar no sentido de viabilizar a reintegração à família de origem ou, na sua impossibilidade, o encaminhamento para família substituta (ECA, Art. 17 e Art. 19). Buscando uma melhor operacionalização do serviço de acolhimento o referido Estatuto em seu Art. 92, determina que: As entidades que desenvolvam programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios: I - preservação dos vínculos familiares; II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem; III - atendimento personalizado e em pequenos grupos; IV - desenvolvimento de atividades em regime de co-educação; V - não desmembramento de grupos de irmãos; VI - evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados; VII - participação na vida da comunidade local; VIII - preparação gradativa para o desligamento; IX - participação de pessoas da comunidade no processo educativo. Apesar de todas as medidas e orientações constantes no ECA, a realidade da maioria de crianças atendidas em serviços de acolhimento no Brasil distancia-se do ideal, pois essas são internadas em instituições que ainda preconizam o modelo assistencialista que pouco consideram as suas necessidades afetivas. 33 Na tentativa de viabilizar um acolhimento mais adequado, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito da Criança e Adolescente à Convivência Familiar e Comunitário (PNCFC) prevê a adequação do espaço físico e do número de crianças e adolescentes atendidos em cada unidade, de forma a garantir o atendimento individualizado e em pequenos grupos. As modalidades existentes de acolhimento institucional são: abrigo, casa-lar e casa de passagem. Sendo que cada modalidade se diferencia no nível de complexidade e estrutura de atendimento oferecido, como se pode ver na descrição abaixo: 1. Abrigo: unidade institucional semelhante a uma residência, inserida na comunidade, em área residencial, oferecendo ambiente acolhedor. Atendimento de grupos de até 20 crianças e/ou adolescentes. Educadores/Cuidadores trabalhem em turnos fixos diários. Acolhimento imediato e emergencial com profissionais preparados a recepção em qualquer horário. Atendimento personalizados e deve favorecer o convívio familiar e comunitário. 2. Casa-lar: unidade residencial, com uma pessoa ou um casal trabalhando como educador/cuidador residente – em uma casa que não é a sua – a um grupo de até 10 crianças/adolescentes. Visando estimular o desenvolvimento de relações mais próximas do ambiente familiar. 3. Casa de passagem: propõe acolhimento de curtíssima duração, onde se realiza diagnóstico eficiente, com vista à reintegração à família de origem ou encaminhamento para acolhimento institucional ou familiar. Outra possibilidade de acolhimento de crianças e adolescentes afastados temporariamente do convívio familiar é o programa de famílias acolhedoras. Este tipo de atendimento é realizado em residências de famílias acolhedoras que são cadastradas junto à entidade de atendimento. Visa propiciar o atendimento individualizado, em uma estrutura familiar e convivência comunitária, permitindo a continuidade da socialização da criança/adolescente. Por não se enquadrar no conceito de abrigo em entidade ou família substituta, torna-se uma modalidade de 34 acolhimento diferenciada e com boa indicação para o atendimento adequada a crianças pequenas que vivenciam situações de violação de direitos. No que tange a complexidade de atendimento, o abrigo é a modalidade de acolhimento de maior complexidade, devendo ser adotada quando todos os outros mecanismos de resolução tiverem sido esgotados ou impossibilitados. No entanto, o relatório emitido pela Comissão da Infância e Juventude do Conselho Nacional do Ministério Público (2013) levanta para a problemática de ocorrência de encaminhamentos imediatos à abrigos, mesmo em casos de menor complexidade que seriam melhor atendidos em casas de passagem, mas que devido ao número limitado destas instituições no Brasil e/ou por uma preferência das autoridades judiciais no encaminhamento para abrigos. Ainda de acordo com os dados do referido relatório, os motivos geradores da condição de abrigamento no ano de 2013 são variados e recorrentes entre si como se pode observar no gráfico abaixo: Gráfico 1: Principais motivos do acolhimento de crianças e adolescentes em abrigos. Brasil, 2013. 35 No que se refere ao tempo de permanência em abrigos, a Comissão indica que o tempo médio de permanência no acolhimento ainda está muito distante do ideal. O ECA estabelece que até o prazo máximo de seis meses, deve haver a reavaliação da necessidade de permanência no serviço, a fim de que não se prolongue por mais de dois anos, salvo comprovada necessidade. Todavia, a realidade diverge dessa recomendação, seja devido à uma questão burocrática ou por não funcionamento da rede de apoio ou por dificuldade de reinserção familiar ou de inclusão em uma família adotiva, visto que o perfil de crianças abrigadas disponíveis para adoção no Brasil não corresponde à expectativa dos brasileiros. A ilustração a seguir, retrata o tempo médio de permanência em abrigos nos anos de 2012 e 2013, onde são apresentadas as estimativas de tempo, sendo que a Comissão da Infância e Juventude do Conselho Nacional do Ministério Público informa que cerca de aproximadamente 10 mil crianças e adolescentes estão com o tempo de acolhimento em abrigo acima de dois anos. Gráfico 2: Tempo médio de permanência em abrigos. Visão geral, 2012-2013. O abrigamento, mesmo sendo uma medida protetiva, ele acarreta uma série de rupturas que diante das fragilidades dos vínculos anteriores e atuais bem como da incerteza quanto ao próprio futuro, de acordo com Parreira e Justo (2005), “estar em situação de abrigado coloca o sujeito em lugar de passagem, onde os vínculos se tornam temporários e as relações, instáveis.” 36 Ainda de acordo com o autor supracitado, A criança não compreende exatamente porque foi parar ali e tenderá a atribuir esse acontecimento a uma vontade ou decisão arbitrárias de alguém. Algumas vezes, a mãe, o pai ou algum outro familiar é responsabilizado pelo seu asilamento numa instituição [...]. Outras vezes, a própria criança se responsabiliza pela sua condição, imputando a si, pela via da culpabilização, os motivos de sua transferência para uma casa-abrigo. É preciso considerar que, subjetivamente, a transferência da criança, pela família, para uma instituição de abrigo será interpretada por ela, subjetivamente, sob forte pressão dos sentimentos de amor e ódio, decorrentes tanto dos vínculos estabelecidos com as figuras parentais como de suas reações diante de sua situação de sofrimento. Dessa forma, ela tenderá a interpretar os fatos que circundam sua situação de asilamento como decorrentes da vontade das personagens que compõem sua história, e não de uma lei propriamente dita que pudesse transcender o arbítrio pessoal e, inclusive, protegê-la de atos de transgressão (PARREIRA & JUSTO, 2005). Quando se remete à questão de institucionalização, também se remeta à falta de espaços individualizados, fora de um ideal de estrutura familiar, com muitas crianças de diferentes localidades, contextos e incertezas quanto à permanência no atendimento e no convívio com as pessoas que por ali passam, sejam elas funcionários, cuidadores, voluntários, visitantes e outras crianças. O abrigo é uma instituição complexa e diferenciada, representando um espaço tanto físico quanto psicológico. Nesse ambiente, as diversas histórias e comportamentos dos acolhidos e de quem acolhe se encontram, algumas vezes se entrelaçam noutras se chocam. A criança em situação de vulnerabilidade demanda um apoio, afetividade e paciência que muitas vezes os adultos que ali estão não compreendem a extensão de tal demanda ou se colocam indisponíveis para tal interação. Estes para conseguirem permanecer no contato direto com essas histórias de abandono, abuso e violência, podem se defender utilizando uma espécie de “escudo subjetivo” onde se limitam ao cumprimento restrito da sua função, ou seja, manutenção dos cuidados básicos com a higiene, alimentação, inserção em unidade escolar e fiscalização nas dependências da instituição. Todavia, a crianças para o seu desenvolvimento enquanto pessoa, indivíduo e cidadão, necessitam de muito mais, elas precisam de contato direto, atenção, demonstração de afeto, paciência, limites e organização, amizade, conversas, escutas e de esperança, é preciso constituir vínculos seguros. 37 A possibilidade de estabelecer vínculos significativos com um ou mais adultos favorece a construção da identidade e os processos de recorte e significação do mundo na vida cotidiana - e é essa possibilidade que falta, via de regra, em contextos como o orfanato e a rua. Em todos os outros contextos, há algum grau de estabilidade de relações com adultos, ainda que sejam qualitativamente muito diversas. [...] Dois aspectos dessa argumentação precisam ser enfatizados. Em primeiro lugar, parece não haver, em qualquer contexto de vida humana, a possibilidade de uma ausência total de vinculação. É no outro e através do outro que o ser humano individual, bem ou mal, se constitui. Até mesmo a criança em situação de rua recria um grupo, uma microssociedade. A criança criada em orfanato pode carregar ao longo da vida a pecha do abandono e perder todos os vínculos criados durante sua permanência nele, ser lançada em um mundo onde não tem vínculos e, portanto, nenhuma rede social. Mas sua sobrevivência, como a de qualquer ser humano, depende de ser capaz de reencontrá- los de alguma forma – ainda que seja às margens da sociedade. Em segundo lugar, a noção de vínculo afetivo não implica juízo de valor moral: o vínculo pode ser carregado de afeto positivo ou negativo, pode envolver sofrimento, abuso e violência - mas continua sendo, mesmo em condições extremas, mecanismo de identidade e lugar no mundo (CARVALHO, 2005 p.189). Orionte e Souza (2005) destacam que muitas crianças são levadas à institucionalização em idade precoce, entre zero e quatro anos, e ficam abrigadas em instituições com condições precárias. A situação é agravada pela baixa qualidade das relações afetivas parentais, pelas constantes e repetidas rupturas com pessoas significativas, pela dificuldade de reinserção familiar, entre outras carências. Observa-se, que ainda assim, os vínculos afetivos criados antes da institucionalização não desaparecem com a ausência de um contato próximo, mas, ao contrário, podem até adquirir caráter ainda mais estreito, sendo também incontestável a necessidade que as crianças manifestam de criar laços que solidifiquem as relações com as pessoas que ali se encontram e com aquelas que estão de passagem. 38 4 DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA ABRIGADA: UM OLHAR BIOECOLÓGICO A criança abrigada não é apenas o substrato de uma vivência institucionalizada, ela reflete a sua história de vida (mesmo em sua pouca idade), na mesma medida em que tenta ressignificar tal história e se adaptar ao processo de rupturas e institucionalização, ao longo do tempo e do espaço. Não é possível entender a condição de abrigamento sem estabelecer de que modo ela é consequência da inadequação do ambiente e/ou estrutura familiar de onde a criança vem. As crianças que estão sendo acolhidas nos abrigos, enquanto aguardam a adoção ou o retorno para suas famílias de origem, vivenciam ainda o impacto de várias situações estressantes tais como agressão, violência física e psíquica, privações variadas e abuso sexual – as mesmas que desencadearam a necessidade de serem retiradas de suas residências. Elas são inseridas na dinâmica da instituição que as acolhe, com todas as dificuldades implicadas na separação da família e, consequentemente, sujeitas às limitações dos cuidados oferecidos por pessoas com quem a criança não tenha laços afetivos profundos (Nogueira & Costa, 2005). Admitindo a importância da estabilidade do ambiente, no sentido de contribuir para a reparação do sofrimento de crianças que mesmo em tão pouca idade já vivenciaram situações de rompimentos, é irrefutável que a qualidade do cuidado e do atendimento que receberão no abrigo será fundamental para a estruturação física e psíquica dessas crianças (Nogueira & Costa, 2005). Assim, por considerar o desenvolvimento humano como um processo relacional e ampliado, onde o meio ambiente tem uma forte atuação, será utilizado como referência teórica o modelo bioecológico do desenvolvimento humano de Urie Bronfenbrenner (1977, 1989, 1996). A ecologia do desenvolvimento humano envolve o estudo científico da acomodação progressiva, mútua, entre um ser humano ativo, em desenvolvimento, e as propriedades mutantes dos ambientes imediatos em que a pessoa em desenvolvimento vive, conforme esse processo é afetado pelas relações entre esses ambientes, e pelos contextos mais amplos em que os ambientes estão inseridos. (BRONFENBRENNER, 1996 p. 18) 39 Esse modelo teórico favorece estudos em desenvolvimento de forma contextualizada e em ambientes naturais, buscando apreender a realidade de forma abrangente, da forma como é vivida e percebida pelo ser humano em seu contexto. São considerados quatro aspectos multidirecionais que são inter-relacionados e compõem o que Bronfenbrenner denomina modelo PPCT: pessoa, processo, contexto e tempo (MARTINS e SZYMANSKI, 2004). Esse modelo enfatiza que a pessoa em desenvolvimento deve ser considerada como uma entidade em crescimento, dinâmica, que sofre influência do meio ambiente, mas que progressivamente vai penetrando nesse meio em que reside e, ao penetrar, o reestrutura, ocorrendo um processo de acomodação mútua e recíproca (BRONFENBRENNER, 1996). Na visão da ecologia do desenvolvimento humano, o ambiente, necessário ao desenvolvimento, não se limita a um ambiente único, imediato, mas abrange as interconexões entre os vários ambientes; sendo assim, “o meio ambiente ecológico é concebido topologicamente como uma organização de encaixe de estruturas concêntricas, cada uma contida na seguinte. Essas estruturas são chamadas de micro-, meso-, exo- e macrossistema [...].”(BRONFENBRENNER, 1996, p. 18) Se os diversos ambientes são molas propulsoras para o desenvolvimento, então as suas estruturas funcionam com as engrenagens que orientam o movimento, sendo que cada uma se diferencia para possibilitar a amplitude do ambiente. Bronfenbrenner (1996) define tais estruturas como sendo: - Microssistema: padrão de atividades, papéis e relações interpessoais experienciados pela pessoa em um determinado ambiente específico. Os elementos que constituem essa estrutura são os fatores de atividade, papel e relação interpessoal. - Mesossistema: corresponde às inter-relações entre dois ou mais ambientes nos quais a pessoa participa ativamente. “Um mesossistema é, portanto, um sistema de microssistemas. Ele é formado ou ampliado sempre que a pessoa em desenvolvimento entra num novo ambiente.” (BRONFENBRENNER, 1996, p. 21). - Exossistema: corresponde a um ou mais ambientes em que a pessoa em desenvolvimento não participa ativamente, mas que afeta e é afetada pelos eventos ocorridos nesse ambiente, como por exemplo, o local de trabalho dos pais. 40 - Macrossistema: se refere às consistências e regularidades de sistemas de ordem inferior (micro-, meso- e exo-) em um nível da subcultura ou da cultura como um todo, envolvendo crenças ou ideologias. Na perspectiva de Bronfenbrenner (1997; 2001; 2005), a continuidade e a mudança ocorrem tanto no próprio indivíduo em desenvolvimento quanto no grupo social e na cultura de onde ele provém, sendo a passagem do tempo o elemento que impulsiona as mudanças desenvolvimentais. “O desenvolvimento humano caracteriza-se pela interatividade entre os processos de mudança e de continuidade ao longo das várias fases do ciclo vital” (DINIZ& KOLLER, 2010). O tipo de interações e vinculações que a criança estabelece com o meio exterior, em particular com as suas figuras cuidadoras, permitirão que seja formado um modelo relacional interno. A depender do contexto de desenvolvimento, poderá ser um modelo de confiança e segurança (quando os cuidadores apresentam uma ação contingente e constante às necessidades da criança), ou insegurança, se essas ações forem consideradas como inadequadas ou inconstantes, também interferindo diretamente nos padrões de apego atuais e futuros (BOWLBY, 1969; 1984). O modelo internalizado formará na criança um repertório de comportamentos, condutas, impressões, expectativas e afetos que serão aplicados nas relações futuras e, consequentemente, consigo mesma (BOWLBY, 1969; 1984; BRONFENBRENNER,1996; 2001; 2005). Nas inter-relações ocorridas, torna-se evidente a atuação ativa e progressiva da pessoa em desenvolvimento e também do ambiente nos diversos contextos e momentos de vida. O desenvolvimento humano é o processo através do qual a pessoa desenvolvente adquire uma concepção mais ampliada, diferenciada e válida do meio ambiente ecológico, e se torna mais motivada e mais capaz de se envolver em atividades que revelam suas propriedades, sustentam ou reestruturam aquele ambiente em níveis de complexidade semelhante ou maior de forma e conteúdo. (BRONFENBRENNER, 1996, p. 23). É na dinâmica e nos contextos das interações nos diversos ambientes experienciados que a pessoa vai se constituindo e formando suas próprias conexões. Quando se fala em crianças que estão vivendo em abrigos, afastadas do convívio familiar devido à negligência, abandono, violência e maus-tratos, em que a família assume o status de ambiente-problema, percebe-se um desafio para o 41 desenvolvimento dessas crianças que, advindas de um referencial muitas vezes pautado em uma relação constante de abuso e violência, são forçadas a amadurecerem antes do tempo, sendo inseridas em atividades e emoções que estão além de suas capacidades ainda em fase de aquisição. Os processos proximais, independente da natureza de interação que foi e é vivenciada entre a criança e a família, são relevantes e tornam-se estruturantes da personalidade. Cecconello e Koller (2003) citando Bronfenbrenner e Ceci (1994), dizem que, [...] a forma, a força, o conteúdo e a direção dos processos proximais, que produzem o desenvolvimento, variam sistematicamente como uma função conjunta das características da pessoa em desenvolvimento, do ambiente (tanto imediato como mais remoto) onde eles ocorrem, da natureza dos resultados evolutivos, das mudanças e continuidades sociais que ocorrem ao longo do tempo durante o período histórico em que a pessoa viveu. Logo, a natureza dos resultados evolutivos, na visão de Bronfenbrenner e Morris (1998, apud Cecconello e Koller (2003), supõe dois efeitos que podem ser produzidos como reflexos dos processos proximais: a competência e a disfunção. A competência está relacionada à aquisição e desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e capacidade para conduzir e direcionar seu próprio comportamento através de situações e domínios evolutivos, tanto isoladamente como através de uma combinação entre eles (intelectual, físico, sócio-emocional, motivacional e artístico); a disfunção se refere à manifestação recorrente de dificuldades na manutenção do controle e na integração do comportamento através de situações e diferentes domínios do desenvolvimento. Vale ressaltar que a perspectiva dos resultados e os possíveis impactos por eles causados dependem da natureza do ambiente onde eles ocorrem. Ou seja, a disfunção pode gerar um impacto maior no desenvolvimento da pessoa quando somada à ambientes desfavoráveis ou desorganizados, pois nestes ambientes as manifestações de disfunção são mais frequentes e mais severas (Cecconello e Koller, 2003). Considerando o contexto dessa pesquisa, chama a atenção a possibilidade alarmante de ocorrência de disfunção, já que, além dos motivos desencadeadores do afastamento do meio familiar, muitas crianças são levadas à institucionalização em idade precoce, entre zero e quatro anos, e ficam abrigadas em instituições com 42 condições precárias de funcionamento. Essa condição se agrava com baixa qualidade das relações afetivas parentais, pelas constantes e repetidas rupturas com pessoas significativas, pela dificuldade de reinserção familiar, entre outras carências. Todavia, não se pode negar a capacidade de superação das adversidades como um fator que também contribuirá para o desenvolvimento, mesmo em circunstancias adversas. Segundo Carvalho e Lordelo (2002, p. 231-232), O desenvolvimento não é determinado, mas possibilitado e circunscrito por um enorme conjunto de fatores e processos em interação dinâmica, envolvendo, portanto, um alto grau de imprevisibilidade. Esses fatores e processos vão desde características individuais presentes a partir da concepção até fatores macroculturais dos grupos humanos nos quais se dá a ontogênese. Como o estudo aqui proposto abrange os aspectos relacionados ao valor simbólico empregado pelas crianças ao falarem da sua história familiar e do abrigo, as suas elaborações representará o próprio individuo como também se referirá a um mundo além dele. O caminhar no mundo do imaginário infantil representa um universo de significações que mesmo quando fantasiosas ou exageradas são essenciais para o conhecimento e análise das vivências de crianças e indicam caminhos para intervenções e aproximações mais assertivas e integradoras. Os motivos desencadeadores de institucionalização são variados, contudo, a presença da violência e/ou da negligência é um ponto comum nas diversas histórias que se tem registro e apenas uma minoria são órfãos ou que já estão disponíveis para adoção. Assim, percebemos a necessidade de um olhar mais sensível ao universo familiar dessas crianças e os diversos ambientes que elas circulam, atuam, influenciam e são influenciadas. É preciso repensar as estratégias de acolhimento e de acompanhamento familiar e torná-las uma prioridade. 43 5 OBJETIVOS DA PESQUISA 5.1 OBJETIVO GERAL - Compreender a percepção que crianças atendidas em abrigos têm em relação ao seu contexto familiar e à sua permanência na instituição. 5.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS - Identificar os motivos precipitantes que geraram a condição de abrigo e o perfil psicossocial das crianças em estudo; - Caracterizar o relacionamento de membros do grupo familiar com a criança e com a instituição durante o período de acolhimento institucional. 44 6 MÉTODO A pesquisa possui natureza qualitativa, na perspectiva de Minayo (1994, p. 22-23), A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. Abordagem qualitativa possibilita um conhecimento aprofundado de um determinado evento e a explicação de comportamentos, fornecendo uma visão do conhecimento próprio do grupo pesquisado, expressando a lógica interna do seu sistema de conhecimento (VÍCTORA, KNAUTH & HASSEN, 2000). “Desta forma, considera que o fenômeno ou processo social tem que ser entendido nas suas determinações e transformações dadas pelo sujeito.” (MINAYO, 1994 p.24). Diante das fragilidades que permeiam o universo dessa pesquisa, e considerando a natureza subjetiva de uma pesquisa que visa à compreensão das particularidades relacionadas à situação de abrigamento e rupturas dos vínculos familiares, considera-se a pesquisa qualitativa como método indicado para aplicação e análise de dados. De acordo com Batista Pinto (2004) a pesquisa qualitativa no âmbito da psicologia é ... um procedimento essencialmente construtivo-interpretativo, que tem suas raízes históricas na Antropologia Cultural, e pode incluir: a integração de fragmentos de um processo em uma nova configuração; a integração da informação obtida na investigação a partir de um conjunto de aspectos qualitativos; a interpretação como o elemento de contato na investigação da realidade estudada; ou ainda a transferência como o instrumento da investigação. (BATISTA PINTO, 2004) A autora supracitada ressalta ainda que “a pesquisa qualitativa é sempre uma pesquisa-ação, pois conforme a ação vai sendo construída é também investigada e interpretada, modificando o próprio processo” (BATISTA PINTO, 2004). O presente estudo, além de explorar e descrever a percepção da criança abrigada a respeito de sua família, define-se como pesquisa e intervenção, na medida 45 em que, paralelo à coleta de dados, oferece aos entrevistados recursos para enfrentamento da sua atual situação por meio do instrumento criado para coleta de dados e da própria condição de psicóloga clínica da pesquisadora. Desenvolver uma pesquisa envolve vários aspectos metodológicos que perpassam pela escolha da metodologia e do método adequados ao objetivo da proposta, aos recursos do pesquisador e o perfil do grupo objeto do estudo. Portanto, "a estratégia utilizada em qualquer pesquisa científica fundamenta-se em uma rede de pressupostos ontológicos e da natureza humana que definem o ponto de vista que o pesquisador tem do mundo que o rodeia” (RICHARDSON, 2009 p. 32). Considerando a natureza desse estudo bem como as características do público do alvo, foi formulado um roteiro de entrevista adequado à linguagem e perspectiva infantil. Visto que o uso de uma metodologia e estratégias de coleta de dados adequada ao público infantil poderá representar além da obtenção dos dados uma possibilidade de auxílio ao processo de adaptação à realidade institucional por parte das crianças público-alvo da pesquisa e oferecer estratégias para que a reintegração em um convívio familiar, com a família de origem ou uma família substituta, seja mais efetiva, minimizando a possibilidade de gerar reações de medo, bem como de novas rupturas e dificuldades na consolidação de novos vínculos afetivos. Como se pode perceber, a investigação dos fenômenos sociais em que a fonte dos dados é o relato do sujeito de pesquisa, bem como a sua interpretação dos eventos em estudo, necessita de um método capaz de acessar esse conteúdo de forma integral e com pouca interferência por parte do pesquisador (RICHARDSON, 2009). Corroborando com Pinheiro (2004, p. 193), Ao relacionar práticas discursivas com produção de sentidos, estamos assumindo que os sentidos não estão na linguagem como materialidade, mas no discurso que faz da linguagem a ferramenta para a construção da realidade. [...] Vivemos num mundo de sentidos conflitantes e contraditórios. Lidamos não com o (sic) sentido dado pelo significado de uma palavra ou conceito que espelham o mundo real, mas com sentidos múltiplos, o que nos leva à escolha de versões entre as múltiplas existentes. Lidamos com uma realidade polissêmica e discursiva, inseparável da pessoa que a conhece. (PINHEIRO 2004, p. 193) Por fim, como o estudo proposto abrange os aspectos relacionados ao valor simbólico empregado pelas crianças ao falarem da sua história familiar e do abrigo, 46 assume-se que as suas elaborações representarão o próprio individuo como também se referirá a um mundo além dele. Trabalhar no mundo do imaginário infantil envolve um universo de significações que, mesmo quando aparentemente fantasiosas ou exageradas, são essenciais para o conhecimento e análise das vivências de crianças e indicam caminhos para intervenções e aproximações mais assertivas e integradoras. 6.1 PARTICIPANTES Participaram da pesquisa onze crianças abrigadas em uma instituição na cidade de Salvador/BA, na faixa etária de cinco a dez anos, sendo três do sexo feminino e oito do sexo masculino, todas foram matriculadas na escola municipal que funciona na área do abrigo. Optou-se por essa faixa etária por entender que nesse período, as crianças se encontram em uma etapa do desenvolvimento em que, geralmente, já desenvolveram concepções sobre a própria família e já conseguem se expressar através da linguagem (BEE, 1997; PAPALIA, 2000). No que tange ao desenvolvimento da linguagem, nessa faixa-etária já se apresenta a estrutura de linguagem básica do adulto, presente em torno dos quatro anos de idade, com aquisição contínua de vocabulário em que adquirem os fundamentos da estrutura linguística e sintática do adulto. Aos cinco anos de idade, elas também já podem compreender e produzir construções de frases bastante complexas e incomuns. E por volta dos dez anos de idade a linguagem das crianças é basicamente a mesma dos adultos (GLEITMAN, REISBERG & GROSS, 2009). Portanto, consideramos que as crianças participantes apresentam o entendimento necessário para a aplicação dos instrumentos que foram utilizados na coleta de dados e as suas expressões (tanto em desenhos quanto na fala) representam as suas vivências, expectativas e percepções acerca da sua família e da sua estadia no abrigo. Para a inclusão das crianças foram consideradas apenas a faixa etária e a livre vontade de participar da pesquisa, não sendo considerados como critérios de inclusão o tempo de abrigamento, gênero e a natureza do contato com a família. Vale 47 ressaltar que os onze participantes correspondem à quantidade de crianças que correspondem aos critérios estabelecidos. Para obtenção dos dados complementares referentes à instituição e histórico das crianças, foram realizadas entrevistas com a psicóloga funcionaria do abrigo, seguindo um roteiro e contemplando os dados, individualmente, de todos os participantes. 6.2 DESCRIÇÃO DO LOCAL A instituição selecionada conta com estrutura física adequada ao atendimento infantil, possui um espaço para o acolhimento de quarenta crianças. No período da coleta de dados, tinham vinte e cinco crianças abrigadas, na faixa-etária de dois a treze anos. O local possui quatro dormitórios sendo dois femininos e dois masculinos, banheiros masculino e feminino, salas de saúde, de coordenação, de acompanhamento psicossocial para atendimentos e acompanhamentos realizados pela psicóloga e assistente social. Também possui uma sala utilizada para a “contação de estórias” e demais atividades lúdicas, sala de televisão, refeitório, cozinha, recepção e um pátio que é utilizado para brincadeiras livres das crianças. O abrigo escolhido tem uma equipe técnica que atende às recomendações do Estatuto da Criança e do Adolescente e tem o seu funcionamento estabelecido dentro de uma perspectiva filantrópica de um complexo religioso que conta com outros equipamentos e projetos sociais. Dentre eles, se destacam a escola, em parceria com o município, ambulatório de saúde, núcleo de psicologia, núcleo assistencial, todos com atendimentos gratuitos à comunidade e realizados por profissionais voluntários. Optou-se por esta instituição por considerar que atende às normas estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e desempenhar um trabalho humanitário, permitindo uma análise focada sobre a relação do menor com a família, sem interferência de grande inadequação de fatores institucionais. 48 6.3 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS Foram utilizados os seguintes instrumentos:  Observação participante;  Prontuários e pastas de encaminhamento das crianças;  Entrevista semi-estruturada. Os dados complementares foram, inicialmente coletados mediante a aplicação de um roteiro de entrevista semi-estruturado que contemplou perguntas fechadas e abertas, denominado Inquérito Situacional (VER APÊNDICE A) com o profissional de psicologia do abrigo, no qual foram colhidas informações sobre a criança, a sua família, os motivos que geraram o encaminhamento para o abrigo e ações da instituição no acompanhamento das crianças em estudo. Esse roteiro de entrevista também contemplou espaços que permitiram à informante que expressasse livremente a sua opinião acerca de cada caso. Para a coleta de dados da pesquisa, foi realizada individualmente uma entrevista lúdica semi-estruturada com as crianças participantes, em que foram abordados os seguintes itens: o contexto familiar, a sua acolhida e permanência no abrigo e as suas perspectivas em relação à situação em que a criança se encontra. A entrevista lúdica teve o formato de um livreto de atividades, intitulado “Ei, estamos aqui!” (VER APÊNDICE B), criado pela pesquisadora, utilizando uma linguagem e formato direcionados ao público infantil, contendo imagens que estão disponíveis na internet, seguindo uma sequência que evoca pensamentos, sentimentos e comportamentos tanto relacionados com a história familiar da criança, quanto com a sua estadia no abrigo bem como busca contemplar possíveis demandas quanto à superação de suas vivências quanto era perspectivas de futuro. Essa entrevista foi aplicada individualmente com cada participante acerca da temática do estudo aqui proposto. Este livreto, além de ter proporcionado a coleta de dados, também foi utilizado como uma estratégia de suporte às demandas originadas com a realização da pesquisa. As crianças participantes escolheram livremente a forma de expressão que lhes fosse mais confortável em cada momento da entrevista, respondendo através da escrita, da fala e do desenho. Posteriormente à entrevista, cada criança recebeu o kit utilizado, contendo o classificador, o livreto ilustrativo que 49 foi confeccionado em conjunto com ela, a caixa de lápis de cor, o lápis comum e uma borracha que foram utilizados por ela. Foram feitas cópias coloridas de todos os livretos confeccionados na entrevista para que fossem feitas as devidas análises. Para a obtenção dos dados complementares foram utilizados os prontuários e pastas de encaminhamento e a observação participante. Também fez parte das ações relacionadas à pesquisa uma devolutiva à Instituição após a finalização do processo de coleta de dados, consistindo em uma visita realizada no próprio abrigo, em que foram apresentados os resultados obtidos com a pesquisa. Todos os materiais utilizados foram custeados pelo pesquisador, não oferecendo ônus para a Instituição. As fontes de informação foram os documentos disponibilizados pela Instituição, os dados da observação participante e os relatos do funcionário e das crianças acolhidas. As entrevistas aconteceram no espaço físico do abrigo e em horários previamente agendados com a instituição, de acordo com a disponibilidade das crianças, sem causar interferência em suas atividades escolares, visitas e/ou de lazer externo. Todas as entrevistas foram realizadas individualmente, em uma sala reservada, garantindo a privacidade dos entrevistados. 6.4 TRATAMENTO E ANÁLISE DOS DADOS A análise de dados foi pautada na técnica de análise de conteúdo, que consiste num conjunto de procedimentos de tabulação e organização de dados discursivos, que possibilita refletir a totalidade do fenômeno em estudo (MINAYO, 1994). De acordo com Minayo (2002, p. 203), a análise de conteúdo tem como objetivo “(...) ultrapassar o nível do senso comum e do subjetivismo na interpretação e alcançar uma vigilância crítica frente à comunicação de documentos, textos literários, biografias, entrevistas ou observação”. Sendo assim, os registros, após a leitura e transcrição das entrevistas, foram organizados em torno de eixos temáticos interpretativos sugeridos pela observação, leitura e análise das entrevistas. 50 Foram apresentados os seguintes eixos temáticos interpretativos: - Configuração familiar apresentada pela criança X Configuração familiar real que consta na ficha da criança; - Motivos precipitantes do abrigamento apontados pela instituição X Motivos precipitantes do abrigamento apresentado pela criança; - Demandas da criança em relação ao abrigo e à família X Demandas da criança que são atendidas em relação ao abrigo e à família. 6.5 ASPECTOS ÉTICOS E ANÁLISE DE RISCOS E BENEFÍCIOS O estudo seguiu as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Resolução 466/12), do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em 15 de maio de 2014, parecer número 648.530. Em atendimento à Resolução 466/12, os informantes foram devidamente esclarecidos quanto aos propósitos do estudo e garantidos quanto aos seus direitos à participação livre, sigilo da sua identificação e confidencialidade dos dados fornecidos. Foram incluídos no estudo os que aceitaram participar mediante o preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e, no caso das crianças, o preenchimento do Termo de Assentimento. 51 7 RESULTADOS E DISCUSSÃO Iniciaremos a apresentação e discussão dos resultados com o perfil psicossocial das onze crianças em estudo, utilizaremos informações obtidas em fichas e prontuários de encaminhamento, bem como a história pessoal de cada uma através dos relatos da profissional de psicologia que compõe a equipe da instituição, em seguida, serão apresentados e discutidos os resultados das entrevistas realizadas, em que consta a percepção das crianças em estudo em relação à sua família e por fim, discutiremos o abrigo na perspectiva da criança em acolhimento e o limiar existente entre essa medida protetiva e o seu impacto no desenvolvimento infantil. 7.1 OS ANJOS, DE ONDE VÊM? Através das entrevistas realizadas com a psicóloga do abrigo em que foi abordada separadamente a história de vida de cada criança participante da pesquisa, bem como através das consultas às respectivas pastas de acompanhamento dessas, foi traçado o perfil psicossocial das crianças em estudo bem como a identificação dos motivos precipitantes da condição de abrigamento. Visando à preservação da identidade, não serão informados nome e localização do abrigo e os nomes dos participantes foram modificados. Todas as crianças são oriundas de bairros populares da cidade de Salvador/BA, havendo entre os participantes a presença de grupos de irmãos, o que imprime à análise de resultados uma perspectiva diferenciada. Observou-se que a maioria das crianças possuem os nomes dos dois genitores em seus documentos oficiais, contrastando com a situação de três que foram registrados apenas pela genitora. Todavia, a filiação registrada não é condição de convivência e a composição nos domicílios no período anterior à entrada na instituição apresenta a seguinte distribuição: - Moravam apenas com a mãe e não mantinham contato com o pai por um tempo médio de cinco anos: oito crianças (dentre as quais seis são irmãos entre si). - Morava com a mãe, mas mantinha contato com o pai: uma criança. 52 - Morava com cuidadores sem grau de parentesco e não convivia com nenhum parente: uma criança. - Morava com a avó: uma criança. Os dados indicam para a presença massiva de família monoparental, tendo a figura materna como a responsável pelos cuidados e manutenção da família. Contudo, identificamos casos de abandono e negligência, em que crianças ficavam por dias em suas casas sem a presença e supervisão de nenhum adulto, não frequentavam a escola, passavam por privação de alimentos e estavam expostas a situações de riscos e violação de direitos. Também foi observada a ausência da família extensa nesses casos. No que tange à caracterização das crianças, oito são do sexo masculino e três do feminino. Em relação à cor da pele, seis são negras, quatro são pardas e uma é branca. A faixa-etária está entre cinco a dez anos de idade, ficando a faixa-etária dos participantes distribuída da seguinte forma: - cinco anos: duas crianças (Gabriel e Ângelo) - seis anos: duas crianças (Rafael e Michael) - sete anos: uma criança (Ismael) - oito anos: uma criança (Samuel) - nove anos: duas crianças (Muriel e Natanael) - dez anos: três crianças (Ariel, Sophia e Emanuel) Um aspecto que chama a atenção é a situação escolar; as crianças maiores de oito anos de idade não estão em séries correspondentes à sua faixa etária e também não apresentam todas as habilidades desenvolvidas na avaliação da escola, o que pode resultar provavelmente pela falta de acompanhamento e frequencia na escola no período anterior ao acolhimento institucional. Como procedimento padrão do abrigo, todas as crianças, ao darem entrada na instituição, foram matriculadas na escola municipal que funciona na área de dependência do abrigo, sendo detectado que todas elas ainda estão sendo alfabetizadas e apresentam dificuldades em acompanhar o conteúdo ministrado em sala de aula. 53 No que se refere à reincidência no serviço de acolhimento institucional, os dados variam de apenas uma até três entradas, variando também a duração do acolhimento, como segue na descrição abaixo: Quadro 1 - Acolhimento Institucional: duração e reincidência. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Crianças Acolhimento Institucional Data de acolhimento Ariel, Sophia, Muriel, Gabriel, Samuel e Rafael (irmãos) 1º acolhimento 12/08/2013 (com previsão de saída para o começo do segundo semestre do ano de 2014, ficarão com o pai). Natanael e Michael (irmãos) 1º acolhimento 12/06/2012 (sem previsão de saída) Emanuel 3º acolhimento 05/04/2010 à 29/07/2010; 06/05/2011 à 26/06/2013; 28/01/2014 (sem previsão de saída) Ângelo (tem um irmão de 03 anos de idade que também está abrigado) 2º acolhimento 22/02/2012 – 19/06/2012; 28/08/2013 (sem previsão de saída) Ismael 1º acolhimento 08/11/2012 (sem previsão de saída) No que tange à responsabilidade do encaminhamento dessas crianças para o abrigo, há uma diferença quando comparado aos casos de reincidência. Com exceção de Emanuel e Ismael, que foram incluídos no serviço por uma indicação dos seus cuidadores, os demais foram encaminhados pelo conselho tutelar. Neste aspecto, vale ressaltar que, nos casos em que houve a intervenção do conselho tutelar, é citada como gatilho a presença de denúncias feita pelos vizinhos. Também consta como solicitante de acolhimento uma demanda advinda da criança. Este fato aconteceu com Emanuel, que, com um ano de idade, foi retirada do convívio materno pelo seu suposto pai (que não o reconheceu como filho) e o entregou para uma senhora cuidar. Nessa ocasião, o suposto pai agrediu e atirou na mãe, que ficou com uma lesão permanente em uma das mãos. O garoto cresceu sem a presença dos genitores e a família que o criou afirmou que desconhecia a localização da mãe da criança. O tempo foi passando, e a senhora que cuidava do menino o devolveu para o seu suposto pai quando ele estava com a idade de seis anos, o “pai” procurou o Juizado de Menor e entregou a criança, dizendo não possuir vínculo de parentesco e desconhecer o paradeiro da genitora. Emanuel foi abrigado e depois retornou para a 54 casa da senhora, que manifestou interesse em recebê-lo novamente. Um ano depois ele foi abandonado na rua, sendo encontrado com sinal de maltratos e levado ao juizado e lá foi decidido pelo reabrigamento. Durante essa segunda acolhida a mãe foi localizada e obteve a guarda da criança; todavia, o menino, depois de um tempo de convivência com a família, fugiu da casa onde estava e retornou para o abrigo, alegando que não estava morando com a sua mãe, mas em uma casa de parentes do segundo relacionamento materno que gerou duas filhas. O garoto, além de ficar isolado em um compartimento da casa, não estava frequentando regularmente a escola, relatando também a ausência materna bem como a ocorrência de surras quando a mãe era chamada. Diante dos fatos, da falta de manifestação de interesse da família em resgatar a guarda e da demanda espontânea, a criança foi reinserida no serviço de acolhimento, manifestando vontade em ser adotado depois desse episódio. As histórias das crianças aqui investigadas são semelhantes à de tantas outras na mesma situação no Brasil, reafirmando os dados emitido pela Comissão da Infância e Juventude do Conselho Nacional do Ministério Público (2013). No grupo aqui em estudo, foram apresentados os motivos expostos na Figura 1 como sendo desencadeadores para o acolhimento (considerando que uma mesma criança pode apresentar mais de um motivo). Figura 1: Motivos desencadeadores para o acolhimento no abrigo. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. 3 8 3 1 1 1 9 8 8 2 1 9 Violência Doméstica Negligência Pais dependentes químicos Exploração Sexual Abandono Cuidador com grave problema de saúde Ausência de algum responsável Condições inadequadas de moradia Falta de alimentos Solicitação de cuidador/família Solicitação da criança Não está frequentando a escola Motivos desencadeadores para o acolhimento no abrigo 55 Embora possuem família, nuclear e/ou extensa, todas essas crianças estavam vivendo em situação de risco pessoal e social. Os seis irmãos, por exemplo, ficavam durante dias e até mesmo semanas sozinhos em uma casa localizada no meio de um terreno com muito mato, sem utensílios domésticos tais como cama, sofá, fogão, mesa, geladeira, e também sem alimentos, enquanto a sua mãe estava na casa do namorado cuidando dos filhos destes. O pai estava desaparecido há aproximadamente cinco anos, vivendo em situação de rua por conta da dependência química. Os vizinhos que davam alguns alimentos começaram a se incomodar com a situação de abandono e fizeram uma denúncia ao Conselho Tutelar, principalmente depois que perceberam que duas das meninas mais velhas (gêmeas), viviam andando a noite pelas ruas e que uma delas (Ariel) estava sendo explorada sexualmente por um homem da vizinhança em troca de pouco dinheiro para comprar alimentos para ela e seus irmãos. As crianças também não frequentavam a escola e viviam em situação de rua. Outros dois irmãos, Michael e Natanael, viviam em uma casa com muitas privações. A mãe é dependente de álcool e outras drogas e vivia em situação de rua, enquanto as crianças ficavam em casa apenas sob o cuidado de sua irmã mais velha, na época com dezesseis anos de idade. Os meninos apresentam problemas de saúde e não tinham nenhum acompanhamento médico; também não frequentava a escola. Já com Ismael, a situação foi diferenciada, visto que não houve denúncia - ele foi levado para o acolhimento a pedido da sua mãe, que é prostituta na cidade de Salvador; devido à sua atividade laboral, o menino morava com a avó materna e o seu companheiro. Essa senhora é aposentada por invalidez, tem grave comprometimento da saúde e o seu companheiro, que é muito violento, agredia ela e a criança também. Em um desses conflitos, a mãe do garoto, depois de uma briga com o seu padrasto, retirou o menino da casa e solicitou que ele ficasse no abrigo até ela ter condição de levá-lo para casa. Ângelo, que também possui um irmão no serviço de acolhimento, está no seu segundo acolhimento e neste caso houve uma mudança nos motivos precipitantes do acolhimento. Na primeira intervenção, as crianças foram temporariamente retiradas do convívio com a família, pois o pai agrediu fisicamente a mãe, na presença das crianças e em local público; por conta disso a polícia foi acionada, o autor da violência foi detido e as vítimas foram acolhidas. As crianças permaneceram no abrigo até o 56 momento em que a genitora conseguiu reorganizar a sua vida, concluir o tratamento para hanseníase e oferecer um espaço adequado para a moradia dos seus filhos. Todavia, a genitora passou a beber constantemente e em excesso, ficando muito violenta e agredindo fisicamente os seus filhos. Os vizinhos denunciaram os constantes episódios de violência e as crianças foram reinseridas no acolhimento institucional, permanecendo abrigadas; e, diante da recusa da mãe em aderir ao tratamento para dependência química, não há previsão de saída desses meninos do serviço de acolhimento. Outro aspecto identificado como um agravamento na situação de algumas crianças são os problemas de saúde por elas enfrentados e que demandam um acompanhamento especializado bem como a intervenção medicamentosa. Quadro 2 - Problemas de saúde apresentados pelas crianças. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014 Problemas de saúde Acompanhamento especializado Uso de Medicamento Criança Tipo Ismael Dificuldade na fala e hiperatividade Fonoaudiólogo e neuropediatra Ritalina Sophia e Ariel Corrimento vaginal intenso Ginecológico Medicação para tratamento ginecológico Natanael Má formação congênita urogenital, mielomenigocele irreversivel e arritmia cardíaca Médico clínico e fisioterapia Medicação diária para arritmia e para combater a infecção urinária Michael Baixa estatura, baixo peso e sopro no coração (comunicação interventricular pequena) Cardiologista Quando há crise a criança é levada ao hospital, não fazendo uso de medicação no abrigo. Mesmo com todo o histórico familiar de violências, abusos, negligência e abandono, as crianças possuem referências de familiares e de pessoas que conviviam e isso faz com que, mesmo nos casos de ausência de visitas, elas busquem por notícias acerca dessas pessoas com as quais conviviam antes do abrigamento, ou seja, perguntam sobre a mãe (oito crianças), irmã (duas crianças), sobrinho (uma criança), avó (uma criança), e por cuidadores sem grau de parentesco (uma criança). Provavelmente por conta das relações estabelecidas anteriormente, da busca por um espaço individualizado com maior liberdade de ação e da incerteza quanto ao 57 futuro ou até mesmo por um sentimento de lealdade com os seus familiares, a maior parte das crianças (dez) manifesta para os técnicos do abrigo a vontade em retornar a morar com a sua família de origem. Devido à dificuldade de reinserção na família nuclear e da ausência de pessoas com grau de parentesco que manifestem interesse em assumir a guarda, as crianças vão permanecendo no abrigo, sem uma expectativa real de saída. Considerando que essa espera pode durar anos e que, na medida em que a criança vai crescendo, diminui a sua possibilidade de ser adotada, visto que no Brasil há uma preferência de adoção por bebês ou crianças pequenas, trata-se de uma experiência dramática, que pode ser vivenciada como desamparo. Essas crianças experienciam um silêncio em relação a seu passado e grande incerteza quanto a seu futuro imediato. Das crianças entrevistadas, apenas duas (Emanuel e Ismael) estão iniciando a fase de preparação para o processo de adoção: isso quer dizer que elas serão preparadas para destituição do pátrio poder e entrarão para o cadastro de crianças disponíveis para adoção. Como foi dito anteriormente, todas as crianças possuem família na cidade e, apesar das tentativas de aproximação do abrigo, poucas conseguem manter o contato frequente com os seus familiares. Temos a seguinte situação quando investigamos a participação da família nuclear (pai, mãe e irmãos) e/ou extensa (avós, tios, primos e etc.) no período de abrigamento: Figura 2 - Situação das crianças quanto a serem visitadas por familiares. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. 6 7 3 2 4 Frequentemente recebe visita da mãe Raramente recebe visita do pai Não recebe visita dos pais Raramente recebe visita da mãe Raramente recebe visita de algum outro familiar Visita da família 58 No que tange o desejo manifesto da família em reaver a guarda do menor, só há o relato do grupo dos seis irmãos e de Ângelo; as demais não buscam o retorno da criança. Apesar da manifestação em reaver a guarda, a família que obteve sentença favorável para a reinserção familiar foi a do grupo dos seis irmãos; em audiência com o Juiz da Vara da Infância foi decidido por atender a solicitação paterna. O Juiz autorizou que a guarda das crianças ficasse com ele, assim que o mesmo conseguisse organizar uma moradia estável. Para possibilitar tal retorno, o abrigo fez a doação dos equipamentos domésticos e mediou a locação do imóvel; diante de tal resolução, em breve as crianças serão devolvidas para o pai. A transferência da guarda para o genitor, pode ser percebida como uma tentativa em reconstruir um laço de parentesco, visto que as crianças não mantiveram contato com o pai por um período de aproximadamente cinco anos anterior ao abrigamento. Esse afastamento ocorreu no momento da separação entre os pais e por conta da dependência química da figura paterna que passou a viver em situação de rua em que ficava a maior parte do tempo sob o efeito das drogas. Faz pouco tempo, ele foi inserido em uma comunidade evangélica e está em processo de abstinência e reinserção no mercado de trabalho. Mesmo se tratando de uma instituição de alta complexidade, com rotinas e procedimentos normatizados, há uma tentativa por parte do abrigo estudado em manter os vínculos familiares, bem como propiciar o encaminhamento dos familiares para a inclusão em programas sociais, serviços e acompanhamentos de saúde, mediar a inserção no mercado formal de trabalho por meio das parcerias firmadas pela instituição, bem como custear a passagem para os que não têm condição financeira de se deslocar do seu bairro para visitar a criança e permitindo que participe do almoço ao lado do filho e o acompanhe durante todo o horário de visita. Apesar da boa estrutura física do abrigo e da tentativa em minimizar o impacto do acolhimento, as crianças que estão sendo atendidas são retiradas do seu ambiente familiar e são inseridas em um contexto de coletividade, sem espaços individualizados, em uma rotina diária estabelecida, com regras pré-estabelecidas e na convivência direta com outras crianças, cuidadores, técnicos e voluntários que estão sempre de passagem. 59 Manter o bom funcionamento do local e a boa convivência entre todos os envolvidos é um grande desafio, principalmente quando se fala da convivência e do repertório de comportamento trazidos pelas crianças e/ou motivados pela condição de abrigamento. Em relação à convivência entre as crianças e delas com os funcionários e cuidadores, observamos uma relação delicada, que exige atenção da coordenação e equipe técnica do abrigo. Foi solicitado à psicóloga que ela avaliasse a convivência entre as crianças e com os funcionários e cuidadores em três níveis: satisfatória, insatisfatória e regular. Como parâmetros para avaliação foi observado a existência e o padrão de conflitos e de convivência, bem como os relatos e queixas de comportamentos apontados nas fichas de acompanhamento de cada criança. Veja o quadro a seguir: Quadro 3 - Convivência com outras crianças e com funcionários/cuidadores. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Convivência com outras crianças Convivência com os funcionários/cuidadores Nível Quantidade de crianças Nível Quantidade de crianças Satisfatória 04 Satisfatória 05 Insatisfatória 02 Insatisfatória 05 Regular 05 Regular 01 Tendo como base as orientações constantes no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - Texto Revisado - DSM- IV-TR (2002), foi feita uma relação de comportamentos comumente emitidos em crianças vítimas de violência, abuso e abandono, considerando como episódios propagadores de vivências traumáticas. Dentre os sujeitos estudados, há o registro na instituição dos seguintes comportamentos emitidos: 60 Quadro 4 - Comportamentos emitidos pelas crianças quando abrigadas, conforme registros da instituição. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Comportamentos Emitidos Comportamento Crianças Observações Choro fácil Ariel; Samuel Em Samuel, foi relatado dissimulação da criança no ato de chorar. Timidez Natanael; Sophia; Gabriel; Ângelo Dificuldade para se expressar Natanael; Sophia; Ariel; Samuel; Ismael Isolamento Natanael; Ismael Agitação motora Rafael; Ismael Contar mentiras Rafael; Muriel; Sophia; Ariel; Samuel; Natanael; Ismael Ansiedade Emanuel Tristeza Natanael; Gabriel; Ângelo Comportamento agressivo Rafael; Muriel; Ariel; Samuel; Emanuel; Ismael Xingamentos, provocações, agressão física e intimidação Comportamento sexualizado Ariel; Sophia; Muriel; Gabriel; Samuel; Rafael Erotização do próprio corpo e busca pelo contato íntimo com outras crianças Comportamento passivo Natanael Medos Michael Entra em pânico quando vê brigas entre os colegas ou quando as pessoas gritam ou ficam nervosas na sua presença, mesmo que não seja nada direcionado a ele. Terror noturno Não relatado Não registrado nas fichas de acompanhamento Tiques e manias Natanael Cheiras as coisas Dificuldade na alimentação Não há Dificuldade de Aprendizagem Natanael; Muriel; Sophia; Ariel; Samuel; Emanuel Dificuldade de aprendizagem devido a falta de estimulação e de frequência em ensino regular no período anterior ao abrigo. Com exceção de Emanuel, que apresenta dificuldade constatada na escrita e na leitura. Deficiência física Não há Dificuldade no controle dos esfíncteres (noturno) Todos Ocorre com todas as crianças episódios de molhar a cama a noite, porém não há relato diário. Exceto, Natanael. Dificuldade no controle dos esfíncteres (diurno e noturno) Natanael Dificuldades no controle da eliminação de fezes e urina 61 Na vivência de situações traumáticas o organismo é levado a buscar um persistente grupo de respostas compensatórias, com um gasto energético elevado e mal-adaptativo, formando um novo estado de equilíbrio que apresenta pouca flexibilidade. Knapp (apud Caminha, 2003) afirma que, As experiências traumáticas - armazenadas nas memórias cognitiva, emocional e motora - geram um padrão característico de estimulação da memória e estruturas corticais e subcorticais associativas, facilitando ao cérebro associações (pareamentos) entre os diversos estímulos sensoriais presentes no evento. Desenvolve-se, também, uma certa vulnerabilidade para falsas associações e generalizações com outros acontecimentos não ameaçadores. De acordo com Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - 4.ed. Texto Revisado - DSM- IV-TR (2002, p. 252): Em crianças mais jovens, os sonhos aflitivos com o evento podem, em algumas semanas, mudar para pesadelos generalizados com monstros, com o salvamento de outros ou com ameaças a si mesmas ou a outros. As crianças pequenas em geral não têm o sentimento de estarem revivendo o passado; ao invés disso, a revivência do trauma pode ocorrer através de jogos repetitivos (por ex., uma criança que esteve envolvida em um sério acidente automobilístico reencena repetidamente colisões automobilísticas com carrinhos de brinquedo). Em vista da dificuldade de uma criança em relatar diminuição no interesse por atividades significativas e limitação do afeto, esses sintomas devem ser atentamente avaliados mediante relatos feitos pelos pais, professores e outros observadores. Em crianças, o sentimento de um futuro abreviado pode ser evidenciado pela crença de que a vida será demasiado curta para incluir a chegada à idade adulta. Pode também haver um "presságio catastrófico", isto é, a crença em uma capacidade de prever eventos futuros indesejados. As crianças também podem apresentar vários sintomas físicos, tais como dores abdominais ou de cabeça. Todavia, há variáveis potenciais que podem acarretar consequências dos traumas vividos por crianças em longo e médio prazo e também é importante considerar as eventuais psicopatologias e predisposições preexistentes nessas pessoas em relação aos transtornos de personalidade. Além da variabilidade individual na configuração de vulnerabilidades ao trauma, as consequências de vivências traumáticas sobre o psiquismo das crianças 62 podem ter também um componente cultural e mesmo étnico, envolvendo um conjunto de dimensões presentes nas respostas emocionais aos traumas, como por exemplo: características da personalidade, sensibilidade afetiva e emocional pessoal, a estrutura de apoio familiar e social e, obviamente, a própria natureza do trauma. O perfil afetivo da pessoa que reage é fundamental para a valorização da experiência vivida, a ponto dos eventos serem mais traumáticos para uns que para outros. O maior volume de pesquisas sobre o impacto psicológico dos traumas em crianças se concentra em abusos, maus-tratos e violência doméstica em geral. Em graus muito variáveis de adaptação e superação, crianças que sofreram abuso e maus-tratos correm maior risco de desenvolverem os quadros de: Transtorno de Estresse Pós-Traumático; Comportamentos Autoprejudiciais; Alexitimia; Transtornos do Humor; Transtorno por abuso de drogas; Problemas de Comportamento Sexual; Dissociação Psicológica; Somatizações. Portanto, as experiências traumáticas precoces, também passarão a fazer parte integrante e importante da personalidade em desenvolvimento, contribuindo significativamente para a constituição da pessoa. 7.2 A FAMÍLIA DOS “SEM” FAMÍLIA: HISTÓRIAS FAMILIARES DAS CRIANÇAS ABRIGADAS A família exerce uma influência direta e intensa, tanto no aspecto favorável ao desenvolvimento global da criança quanto no aspecto prejudicial e desmotivador. Todas as crianças em estudo possuem família, ou seja, apesar de estarem abrigadas e não receberem frequentemente visitas dos seus familiares, elas não são órfãs e identificam algumas pessoas como sendo seus parentes, como pode ser visto nos relatos a seguir, quando é solicitado que a criança mostre a família em que ela nasceu: 63 Quadro 5 - Composição familiar na percepção das crianças. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Criança Família Identificada (na ordem apresentada pela criança) Ariel “Mãe G., pai J., Muriel, Sophia, eu, Samuel, Rafael e Gabriel.” Sophia “Gabriel, Mãe G., Pai J., Rafael, Muriel, Samuel, Ariel e eu.” Muriel “Gabriel, Mãe G., Sophia, Ariel, Pai J., Avó, Rafael, eu e Samuel.” Samuel “Ariel, Sophia, Gabriel, meu pai, minha mãe, eu, Ariel, meu avô e minha avó.” Rafael “Minha família é Ariel, Samuel, Gabriel e eu.” Gabriel “Eu tenho um pai, uma mãe, Neguinho e Thuca, e tem Ariel, Sophia, Muriel, Samuel, Rafael, M. meu avô e minha avó.” Natanael “Michael, irmã J., cachorro, gato Bob, M. filho da minha irmã.” Michael “J. minha irmã, M. (namorado da irmã) de lá de casa que brigou com a gente, S., Natanael meu irmão, Michael que é o meu nome e tem um bebê que tá na barriga de J., ele já nasceu, ele é grandão.” Ângelo “Mãe Jo., Ângelo, N. irmã e J. meu irmão.” Emanuel “Irmã S., irmã Sa., pai J., mãe, irmã St. e eu” Ismael “Eu, meu tio (amigo da mãe) e mãe” No quadro acima identificamos a composição familiar em cinco formatos: o - identificação de todos os membros da família nuclear (pais e irmãos): Ariel, Sophia e Emanuel. o - Identificação dos membros da família nuclear constando a figura materna e os irmãos: Ângelo. o - Identificação de todos os membros da família nuclear e inclusão dos avós: Muriel, Samuel e Gabriel. o - Identificação de família considerando apenas os irmãos: Rafael e Natanael. o - Identificação da família considerando irmãos e alguma outra pessoa que tenha convivência no ambiente doméstico: Michael e Ismael. Independente da composição apresentada é inegável a identificação de figuras com grau de parentesco, o que remete à ideia de que, mesmo na inconstância ou instabilidade da convivência, há o sentimento de pertença a algum contexto familiar, o que converge com a constatação de CAVALCANTI & GOMES (2013) ao afirmarem que “a família é, portanto um território social e simbólico, constituindo-se num lugar de referências, segurança e proteção, mas também de conflitos e violências” (p. 356). 64 A presença diante da ausência ou da disfuncionalidade do convívio não é força imperadora para a completa inexistência da família; alguns membros podem ser negados ou até mesmo incluídos no sistema, e a esta possibilidade são associados os fatores relacionais que foram gerados e consolidados ao longo da convivência. A ausência pode se impregnar de uma força simbólica que refletirá em todo o ambiente. Os aspectos sociais e familiares relacionados ao afastamento de crianças de suas moradias e, em alguns casos, do convívio familiar, traz em cena a situação de vulnerabilidade que se encontram muitas famílias brasileiras. Elas estão no centro dos debates e das políticas públicas de assistência social que consideram que a vulnerabilidade socioeconômica dessas famílias está diretamente relacionada com a origem e consequências de problemas que assombram a sociedade como, por exemplo, o aumento da violência urbana e doméstica, miséria, desemprego e baixa escolaridade (Ferrari e Kaloustian, 1994; Saraiva, 2002 apud Siqueira, baid & Dell’aglio, 2012). Milhares de famílias com baixo nível socioeconômico estão privadas de mínimas condições de vida e submetidas a provações cotidianas. São famílias que se encontram em situação de risco e vulnerabilidade, e que nem sempre conseguem desempenhar seu papel de mantenedores e guardiões do desenvolvimento de seus filhos. (SIQUEIRA, ABAID & DELL’AGLIO, 2012 p. 176) Nas famílias em crise, as crianças acabam ficando vulneráveis, no entanto, quando essas crises envolvem todo tipo de violência ou abuso, todos os seus membros podem apresentar algum tipo de sequelas e não apenas os que sofreram diretamente a violência ou os abusos (CASAS, 1998). Corroborando com Cavalcanti e Gomes (2013, p. 355), O agrupamento familiar, primordial contato da pessoa humana com o mundo, constitui-se no primeiro espaço de socialização das relações e dentro dele se aprendem rotinas e são construídos os significados/significantes culturais. Essas rotinas, os cuidados e a negligência/abandono na educação da criança podem produzir consequências para toda a sociedade. Rememorando o que foi apresentado no item 7.1: todas as crianças em estudo estão incluídas no sistema de acolhimento como uma medida protetiva visto que 65 estavam em situação considerada como de risco pessoal e social, vivenciando situações de pobreza, negligência, violência, abusos e privações. É um ponto comum nas histórias apresentadas a participação da criança nas situações de conflitos e rupturas, em que, através da experiência elas iam construindo a sua forma de reagir e de atuar nesse ambiente. [...] em maior medida do que para muitas outras espécies, o ser humano cria o ambiente que dá forma ao seu desenvolvimento humano. Suas ações influenciam os diversos aspectos físicos e culturais que modelam sua ecologia, sendo este esforço o que faz os seres humanos – para melhor ou para pior – produtores ativos de seu próprio desenvolvimento. (BRONFENBRENNER, 2011 p. 37) Elas aprenderam a desempenhar papeis de acordo com as pressões sofridas e com as demandas de cada momento, é inegável o impacto de tais experiências desencadeadoras do abrigamento bem como às relacionadas com o processo de institucionalização no desenvolvimento. Para Bronfenbrenner (2011 p. 38), O reconhecimento de que os processos de desenvolvimento humano são profundamente influenciados pelos eventos e condições do meio ambiente concede maior importância às políticas públicas e intervenções que tem efeito sobre a natureza do ambiente. Como consequência, eles têm efeitos significativos, frequentemente não previstos, sobre o desenvolvimento do crescimento das crianças, em suas famílias, nas salas de aula e em outros contextos. Ressalte-se que, na perspectiva bioecológica, o termo experiência é utilizado para exprimir tanto as condições objetivas do ambiente quanto a maneira como estas são experienciadas subjetivamente pela pessoa (BRONFENBRENNER, 2011). Quando foi oportunizado às crianças falarem livremente sobre coisas relacionadas com a sua família e que elas gostariam de falar, elas trouxeram fatos do cotidiano doméstico, dinâmica familiar, segredos de família e as suas percepções relacionadas a este grupo, como segue no quadro abaixo: 66 Quadro 6 - Coisas que a criança sabe e quer contar sobre a sua família. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Criança Coisas que sabe e quer contar sobre a sua família: Ariel “Quando eu fico em casa com minha mãe e minha vó vai trabalhar, e minha mãe bota todo mundo pra escola, pra creche e fica só nós duas em casa, e aí eu fico cuidando da casa, lavando os pratos e arrumando as coisas.” “Os adultos vão trabalhar muito longe e as crianças ficam sozinhas em casa!” Sophia “Meu pai me machucou muito! Ele usava umas coisas e aí ficava enraivado e me batia, uma vez ele bateu a minha cabeça com força. Tenho um monte de marca que foi ele que fez. Também eu só ando feia, com o cabelo feio e não ganho roupa, fico andando igual uma maloqueira na rua. Só gostam da minha irmã gêmea Ariel. Tudo é pra ela, minha família gostava mais dela do que de eu, ela tem tudo mais de que eu, ela tem mais espaço e ganha coisas bonitas.” Muriel “As vezes meus irmãos briga! Samuel briga com Ariel, só porque Ariel não pode conversar nada com os outros e ele vai pra cima de chute e bate de murro em Ariel. Samuel é malvado, ele não tem um pingo de educação, ele como igual um porco. Ele só fala com os outros batendo, xingando, chutando! Ele bate na irmã! Que menino é esse?! Tá repreendido!” Samuel “Nada! Não tem nada que quero falar sobre a minha família. Meu avô trabalha bem. Meu avô é... você sabe (risos)! O quê o seu avô é? Hum... ele é... (risos) V-I-A... sabe, que faz aquelas coisas com menino? Hum... Viado! (risos) Eu vi ele fazendo essas coisas com um menino amigo meu. Mas ninguém sabe, só eu que sei!” Rafael “Ariel é minha família, ela está triste.” Gabriel “Minha mãe ia pra São Paulo e eu ficava só com os meus irmãos. Minha mãe tem duas casas.” Natanael “Eu não sei da minha família, esqueci! Não lembro da minha mãe! Acho que a família é bonita, linda, uma família maravilhosa.” Michael “Esqueci da minha família, não sei onde mora. J. (irmã) fica assim (fazendo a expressão de raiva) porque M. pegou o dinheiro dela.” Ângelo “Minha família grita. Eu tenho um monte de irmão. Meu pai já morreu!” Emanuel “Quero falar de minha irmã. Ela não gosta de minha mãe, nem eu! Porque ela fica batendo na gente.” Ismael “Eu não sei nada da minha família.” Falar da história da própria família possibilita à criança trazer à tona, além da sua experiência objetiva, a sua percepção dos fatos, e entender o que está sendo internalizado é o primeiro passo para construir uma rede de apoio a essa criança e caminhar para um possível resgate de uma família. Ao dividir a fala de Ariel temos duas categorias, a primeira que aborda a participação da criança nas atividades rotineiras da casa, e a segunda categoria que remete à ausência da sua figura materna que ao mesmo tempo em que é sentida é também justificada pela criança, ao dizer “os adultos vão trabalhar muito longe e as crianças ficam sozinhas em casa!”. A ausência constante e por tempo prolongado da genitora e de qualquer outro adulto, possibilitou a ausência de cuidados, permitindo 67 que situações de violências, abusos e exploração ocorressem com Ariel e seus cinco irmãos, e consequentemente fossem abrigadas. Analisando a perspectiva dos seis irmãos, eles vivem no mesmo ambiente mas cada um com uma experiência diferenciada, o que ficou nítido em suas elaborações. Sophia fala da violência física praticada pelo seu pai devido ao uso de drogas e às cicatrizes deixadas em seu corpo, demonstra uma baixa na auto-estima e uma suposta preferência da sua família pela a irmã gêmea Ariel. Para Muriel explora o relacionamento entre os irmãos que é conflituoso e em alguns momentos violentos, apontando Samuel como protagonista de tal conduta. Samuel por sua vez, inicialmente diz não querer falar sobre a família, mas deixa a entender uma possível situação de abuso sexual praticada pelo avô, como se fosse um segredo. Rafael fala da tristeza em que se encontra Ariel e a coloca como sendo a “sua família”. Para Gabriel, a ausência materna é o que precisa ser dito. As experiências são únicas e inerentes à própria apreensão que a pessoa faz de tudo e de todos com quem ela interage. Para o modelo bioecológico os eventos ambientais tem um papel importante no desenvolvimento humano, Os eventos ambientais que são mais imediatos e potentes em afetar o desenvolvimento da pessoa são as atividades que outras pessoas realizam com ela ou na sua presença. A inserção ativa ou a mera exposição àquilo que os outros estão fazendo geralmente inspira a pessoa a realizar atividades semelhantes individualmente. (BRONFENBRENNER, 2011 p. 89) Observa-se também a presença de relações familiares idealizadas, como emerge na fala de Natanael ao falar da sua família: mesmo diante de uma negativa inicial há uma fantasia ao dizer que “Acho que a família é bonita, linda, uma família maravilhosa.” Essa idealização pode ser justificada como sendo uma tentativa de adaptação e restauração por parte da criança em resgatar as suas relações familiares fragilizadas, revelando uma dicotomia entre as experiências reais e imaginadas (SIQUEIRA et al., 2009). Ângelo e Emanuel mostram a família como um ambiente de violência, enquanto que Natanael, Michael e Ismael demonstram dificuldade em resgatar essa história. As crianças têm muito por dizer e também por perguntar; apesar de ocuparem um espaço fragilizado, de terem sido vítimas nas ações de seus familiares, elas são 68 ativas no processo do próprio desenvolvimento. Poder contar a própria história em um espaço de escuta e de apoio, também possibilita que elas expressem as suas dúvidas sobre a sua situação atual e futura. Nesse espaço aberto para perguntas sobre a família, foram identificados três padrões de questionamento. O primeiro padrão se refere à possibilidade de retorno para a família e de notícias sobre algum membro (Ariel, Sophia, Muriel, Natanael, Michael, Ângelo e Ismael). O segundo representa uma busca por respostas acerca de fatos relacionados aos fatores precipitantes do abrigamento (Ariel, Muriel e Emanuel). E o terceiro, apresentou-se como uma negativa à família que, considerando a história de vida dos respondentes, pode ser entendida como uma reação à ausência e privação a que as crianças foram submetidas (Samuel, Rafael, Natanael e Ismael). Veja o quadro a seguir: Quadro 7 - Dúvidas da criança em relação à sua família. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Criança Coisas que quer saber sobre a sua família e que ainda não sabe: Ariel “Quero conhecer a minha bisavó, eu não sei onde ela mora. Quero saber por que o meu pai e minha mãe não moram juntos ainda.” Sophia “Eu vou morar com a minha mãe?” Muriel “Quero saber muitas coisas! Minha mãe tá trabalhando pra comprar uma casa pra tirar a gente daqui? Quero saber por que meus irmãos ficam assim na rua, se sujando e aprontando.” Samuel “Não quero saber de nada deles.” Rafael “Eu não quero perguntar da minha família.” Gabriel “Não quero saber da minha família!” (a criança mudou de expressão ao responder) Natanael “Quero saber se eles vem me buscar. Se ela (mãe) vai comprar brinquedos pra mim.” Michael “Cadê J. (irmã)? Onde J. mora?” Ângelo “Quero saber se minha mãe tá trabalhando pra vim me buscar logo. E se comprou uma casa com piscina.” Emanuel “Quero saber por que o meu pai deu um tiro na minha mãe, na mão dela. E por que minha mãe ficava batendo em mim e em minha irmã. Meu pai tinha inveja da minha mãe porque ele queria ficar comigo.” Ismael “Não quero saber nada de ninguém, só onde tá minha mãe.” Essas crianças vivenciam constantemente os reflexos da ruptura e da instabilidade. Elas sabem que possuem família e que foram encaminhadas para o acolhimento por algum motivo relacionado ao convívio família. No entanto, elas buscam constantemente a interação com os seus dois mundos, o mundo da sua casa que ficou inacessível ao contato imediato e o mundo institucionalizado do abrigo, que 69 é a sua realidade atual e por tempo indeterminado. E é nessa interação, no diálogo entre os dois mundos, que o desenvolvimento vai ocorrendo, que os padrões, modelos e crenças vão sendo construídos e reproduzidos. Ao longo do ciclo de vida, o desenvolvimento humano ocorre por meio de processo de interação recíproca, progressivamente mais complexos entre um organismo humano biopsicológico em atividade e as pessoas, objetos e símbolos existentes no seu ambiente externo imediato. Para ser efetiva, a interação deve ocorrer em uma base estável em longos períodos de tempo. Esses padrões duradouros de interação no contexto imediato são denominados como processos proximais. [...] Em suma, os processos proximais são postulados como a força motriz primária do desenvolvimento humano. (BRONFENBRENNER, 2011 p. 46). É por meio da participação nos processos de interação ao longo do tempo que a capacidade, a motivação, o conhecimento e a habilidade dos mais jovens em interagir com outras pessoas e consigo mesmo são estabelecidas, portanto, os processos proximais funcionam como mecanismos de interação pessoa-contexto. A forma, o poder, o conteúdo e a direção dos processos proximais podem indicar as condições críticas para que o desenvolvimento se processe, podendo sofrer variações a partir das características da pessoa em desenvolvimento (incluindo herança genética); do contexto (tanto imediato como o mais remoto); e das continuidades e mudanças que ocorrem ao longo do tempo durante todo o ciclo de vida, considerando também o tempo histórico em que a pessoa está vivendo (BRONFENBRENNER, 2011). Dentro da Teoria Bioecológica, o desenvolvimento humano é definido como o fenômeno de continuidade e de mudança nas características biopsicológicas dos seres humanos, como indivíduos e como grupos (sic). Esse processo se estende ao longo do ciclo de vida, mediado pelas sucessivas gerações e pelo tempo histórico, tanto o passado quanto o futuro (BRONFENBRENNER, 2011 p. 38). O núcleo familiar desempenha um papel central para a sobrevivência humana, é na interação com esse microssistema que a criança é preparada para sobreviver e viver em sociedade. Contudo, como o desenvolvimento humano é um processo ativo e relacional, há uma interação constante entre os sistemas, uma alteração em um deles poderá acarretar em consequências nos outros e consequentemente, na 70 pessoa. Sendo assim, a pessoa é concebida como resultado desse processo de desenvolvimento humano no qual ela faz parte. O ambiente ecológico que comporta o desenvolvimento humano é composto pelas estruturas concêntricas interconectadas, microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. [...] O ambiente ecológico é concebido como se estendendo muito além da situação imediata, influenciando de forma direta a pessoa em desenvolvimento, os objetos aos quais ela responde ou as pessoas com quem interage face a face. São de igual importância as conexões entre outras pessoas presentes no contexto, a natureza dessas ligações e a sua influência indireta sobre a pessoa em desenvolvimento, pelo seu efeito naquelas que interagem com ela face a face. Esse complexo de inter- relações no contexto imediato é chamado de microssistema. O princípio de interconectividade é percebido como se aplicando não apenas dentro dos contextos, mas com igual força e consequência nas relações entre eles, naqueles em que a pessoa em desenvolvimento participa diretamente e nos que talvez ela nunca entre, mas nos quais ocorrem eventos que afetam aquilo que acontece no seu ambiente imediato. Os primeiros constituem o que chamarei de mesossistemas e os últimos, de exossistemas. Finalmente, o conjunto de sistemas encaixados e interconectados é percebido como uma manifestação de padrões globais de ideologia e de organização das instituições sociais comuns a uma determinada cultura ou subcultura. Esses padrões generalizados são denominados como macrossistemas. Assim, dentro de uma determinada sociedade ou grupo social, a estrutura e a essência dos micro, meso e exossistemas tendem a ser similares, como se fossem construídos do mesmo modelo principal, fazendo os sistemas funcionarem de maneira semelhante.” (BRONFENBRENNER, 2011 p. 90) No caso da criança abrigada, é possível representar sua inserção nos diversos sistemas que constituem seu contexto de desenvolvimento conforme consta na Figura 3, a seguir. 71 Figura 3 - A criança abrigada e seu contexto, conforme o Modelo Bioecológico do Desenvolvimento Humano. Com a permanência da criança no serviço de acolhimento institucional, é modificada a inserção nos diversos sistemas que constituem o seu contexto de desenvolvimento. A partir do abrigamento, a comunidade institucional passa a ser o microssistema, enquanto o núcleo familiar passa a ocupar o espaço do mesossistema. O processo de desenvolvimento da criança acolhida em abrigo, apesar de seguir um fluxo natural do processo de acomodação mútua e recíproca, provavelmente apresentará diferenças nos seus resultados, de acordo com a dinâmica dos processos proximais. A vulnerabilidade, violências e abusos experienciados no núcleo familiar podem gerar uma visão de mundo e de relações distorcidas, alterações nos padrões de interação consigo e com o outro e também ultrapassar a esfera do mundo privado e atingir segmentos da sociedade – de modo mais imediato, vão se expressar na própria experiência do abrigo. Tendo como base os dados obtidos nesse estudo, a família ocupa um espaço de contradição de sentimentos e intenções, que permeia o imaginário idealizado que entra em choque com as experiências reais. A ausência e o abandono das pessoas com parentesco (avós, tios e primos) potencializam a sensação de incerteza quanto ao futuro. Mesmo na fragilidade do vínculo, a criança continua esperando que alguém próximo a leve para casa e restaure a confiança em dias melhores em um ambiente familiar de cuidado, amor e proteção. 72 7.3 MEU ENDEREÇO, O ABRIGO O abrigo, tantas maneiras de nomear e outras tantas de sentir. Um endereço social, uma moradia temporária, uma instituição de acolhimento, uma casa grande. São muitas as suas definições, mas nenhuma consegue abarcar toda a subjetividade empregada a este espaço. Do ponto de vista das políticas públicas, o abrigo é um equipamento de alta complexidade que serve a uma medida protetiva; para a sociedade, um local onde ficam crianças e adolescentes que não possuem família ou que representam um problema social; para os funcionários, técnicos, mantenedores, voluntários e cuidadores, um local de trabalho, uma escolha profissional, uma missão, um desafio; para as famílias, o local onde as suas crianças estão morando e que, para muitas, gera uma desobrigação no cuidado; mas, e as crianças que lá estão? Qual é a percepção que elas têm em relação ao abrigo? Nesse item será discutido o abrigo na perspectiva da criança, não com o objetivo de esgotar o tema, mas de possibilitar uma reflexão acerca do limiar entre a medida protetiva de acolhimento institucional e o seu impacto no desenvolvimento infantil. Como argumentado na seção anterior, o abrigo também se configura como um ambiente de desenvolvimento da pessoa. Nele, o modelo processo-pessoa- contexto-tempo (PPCT) pode ser representado da seguinte forma: a) O processo de desenvolvimento: fusão e dinâmica de relação da criança e do contexto; b) A pessoa: a criança com o seu repertório individual que engloba suas características biológicas, cognitivas, emocionais e comportamentais; c) O contexto: a atuação e o tipo de interação dos sistemas entrelaçados (microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema) no contexto particular da criança; d) O tempo: que envolve as dimensões do tempo ontogênico, familiar e histórico da criança. 73 O serviço de acolhimento em abrigo é uma proposta de acolhimento coletivo, em que outras crianças com faixa-etária e contextos diferenciados passam a conviver dentro de uma dinâmica relacional, em que os seus processos individuais de desenvolvimentos passam a interagir e também a ocupar o status de contexto de desenvolvimento de outras pessoas (crianças e funcionários/cuidadoras) inseridas na instituição. O acolhimento exerce um papel crucial na história de vida das crianças: de um lado está a garantia da proteção e preservação dos direitos e por outro lado está a própria operacionalização desse mecanismo. O acolhimento institucional pode se constituir em uma alternativa de proteção e saúde para muitas crianças e adolescentes em risco, operando como um fator de proteção ao seu desenvolvimento. Mas por outro lado, a separação da família e o ingresso em um ambiente novo e estranho podem atuar como mais uma violência para estes, levando à vivência de mais sofrimento. (SIQUEIRA; ABAID & DELL’AGLIO, 2012 p. 185). Todas as crianças do presente estudo sabem o nome da instituição em que estão acolhidas; nomeiam os funcionários e as suas funções e falam das suas atividades e rotina no abrigo. Foi constatado que a maioria das crianças gostam de estar no abrigo, tendo como ponto convergente nos relatos a presença de cuidadores, o acesso a alimentos e roupa e a oportunização do brincar. As três crianças que disseram não gostar de ficar no abrigo, justificaram que não gostam de estar no abrigo porque preferem a própria casa. Tais relatos podem ser vistos no quadro a seguir: Quadro 8 - A criança gosta de ficar no abrigo? 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Criança Você gosta de ficar no abrigo? Por quê? Ariel “Sim. Porque aqui é legal, tem funcionária, as funcionárias são boas, tem comida na hora certa, tem banho na hora certa. Aqui é divertido.” Sophia “Sim. Porque aqui tem as pessoas que respeitam a gente, que cuidam da gente, que amam a gente. Aqui tenho roupa.” Muriel “Sim. Porque aqui é divertido e não fico na rua.” Samuel “Sim. Porque aqui é bom, aqui tem cuidadora.” Rafael “Sim. Eu gosto! Tem Ariel, Sophia e Muriel aqui. Gabriel “Não. Aqui é ruim! Eu gosto de ficar na minha casa.” Natanael “Sim. Porque aqui eu gosto de comer e brincar de futebol.” Michael “Não. Porque a gente quer morar na nossa casa. Gosto de morar na casa da gente.” Ângelo “Não. Eu gosto de ficar em casa.” Emanuel “Sim. Porque aqui é bom, ninguém me bate, deixam a gente brincar e deixa forrar a cama.” Ismael “Sim. Porque aqui tem um monte de coisa, tem televisão, tem videogame.” 74 Siqueira, Abaid e Dell’aglio (2012 p. 183) afirmam que “o tempo de contato da criança com uma estrutura institucional, propiciadora de uma rotina e de experiências de vida positivas, pode favorecer a diminuição do número de sinais de dificuldades emocionais”. No abrigo, locus desta pesquisa, por ter o seu funcionamento pautado em uma visão humanitária e por contar com boa estrutura física e uma equipe técnica qualificada, é oportunizada às crianças acolhidas uma rotina de cuidado e assistência; apesar do ambiente ser coletivo e com regras institucionalizadas, elas experimentam um espaço em que podem ser cuidadas e tratadas como crianças. Assim, o abrigo assume um importante papel na vida das crianças abrigadas, é nesse contexto que eles desenvolvem atividades planejadas, lúdicas e escolares, cooperam e disputam com outras crianças, são inseridos em uma rotina de limpeza e higiene, além de estabelecer relações afetivas com pares e adultos do abrigo (SIQUEIRA et al., 2009). No que tange a rotina e possibilidades institucionais, na visão das crianças, há aspectos positivos e negativos para todas. Elas relacionaram o que gostam, o que não gostam e o que às vezes gostam de fazer no abrigo: Quadro 9 - Preferências das crianças. 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Criança O que gosta de fazer no abrigo O que não gosta de fazer no abrigo E o que às vezes gosta de fazer no abrigo Ariel “Estudar, crescer e ter muitos amigos. Ficar fazendo show, dançando, me divertindo com as minhas irmãs e minhas amigas.” “Quebrar as coisas, não gosto que o abrigo fique sujo. Não gosto que desobedeça as funcionárias. Que me acordem pra ir pra escola de manhã cedo.” “De forrar a minha cama.” Sophia “Brincar, estudar, fazer palhaçada com as meninas, assistir televisão.” “Quando os meninos entram no quarto das meninas para perturbar.” “Da coordenadora, é que às vezes ela briga com a gente.” Muriel “Estudar, desenhar, comer, ser protegida e não ficar na rua. Gosto do passeio que tem. Eu gosto de escovar os dentes todo dia.” “De ser maltratada, de me sentir um saco de pancada. Não pode dar risada que Emanuel bate. Das minhas irmãs brigando, batendo.” “As vezes eu gosto de fazer o dever.” Continua 75 Continuação Samuel “Eu gosto de brincar, de me divertir.” “Um pouco de coisa! Não gosto de que ninguém me bata, não gosto de ficar sem nada, assim sem brincar, sem nada, sem sapato, sem brinquedo.” “De ir pra escola.” Rafael “Gosto de brincar, de brincar de lutar.” “De bater, brigar, xingar. Não gosto de ir pra escola, porque lá os meninos me bate.” “Da escola.” Gabriel “De brincar.” “De ir pra escola.” “De ficar aqui.” Natanael “Brincar e estudar.” “Brigar.” “Ir para o colégio.” Michael “Brincar, estudar. Ir pra escolinha.” “Fazer ousadia de ficar teimoso e de ficar de castigo.” “Não sei.” Ângelo “Comer almoço, tomar café, beber água, tomar lanche, rezar. Assistir televisão. Gosto da escola.” “Não gosto de Emanuel.” “Da escola.” Emanuel “O que gosto mais é de comer, estudar, trabalhar forrando as camas e brincar.” “Não gosto de brigar, não gosto de xingar e não gosto de tomar vitamina.” “Da vitamina.” Ismael “Gosto de brincar, de ir pro passeio que tem, de ir no parque.” “Não gosto de ficar de castigo.” “Da escola.” No aspecto positivo, a brincadeira está presente em todas as respostas, assim como frequentar a escola consta na maioria. Também é marcante a avaliação positiva que é dada à manutenção dos requisitos mínimos para sobrevivência: alimentação e higiene, como por exemplo a fala de Muriel (nove anos) que diz gostar de “estudar, desenhar, comer, ser protegida e não ficar na rua. Gosto do passeio que tem. Eu gosto de escovar os dentes todo dia.”, ou seja, o abrigo proporciona a segurança que ela não tinha no seu convívio familiar. Quanto ao aspecto negativo, não há referência à estrutura da instituição, mas ao comportamento agressivo emitido pelas próprias crianças. E o que é visto como variável no nível de satisfação, as crianças indicam as atividades ou ações que representam a instalação das regras institucionais. Em linhas gerais, a percepção das crianças em relação ao abrigo é positiva. Mesmo as que disseram não gostar de estar na instituição, relacionaram os aspectos 76 positivos com maior dimensão do que os negativos, o que conduz a hipotetizar que a rejeição não é ao local, mas ao afastamento da família. O abrigamento para a maioria das crianças representa o marco da ruptura na convivência com os seus familiares e com as pessoas com as quais se relacionavam antes do acolhimento. Algumas crianças podem manifestar culpa por terem sido acolhidas, como se pode observar nas respostas obtidas quando é perguntado se a criança sente culpa por estar abrigada. Quadro 10 - A criança sente culpa por estar abrigada? 11 crianças, Salvador, Bahia, 2014. Criança Sente culpa por estar abrigada? Ariel “Sim! Porque eu não sabia que [vinha] pra cá.” Sophia “Eu me sinto culpada porque eu não cuidei direito dos meus irmãos. Minha mãe e meu pai não cuidou direito da gente. E eu tenho culpa porque não prestei atenção no que eles falavam e no que brigavam com a gente.” Muriel “Eu não!” Samuel “Não!” Rafael “Não! Eu gosto de ficar aqui!” Gabriel “Não foi por minha culpa.” Natanael “Não! Eu não fiz nada!” Michael “Não! J. (irmã) que não vem buscar e minha mãe foi embora.” Ângelo “Sim! Porque a polícia me colocou aqui. Porque eu corri aí eu tava no outo fonato, aí a mulher me tirou e me botou nesse fonato aqui!” Emanuel “Não! A culpa é da família que não cuida direito!” Ismael “Não!” A percepção que cada criança tem em relação à sua situação familiar, ao seu contexto de moradia e o seu papel no processo de acolhimento, é particular e mesmo entre os grupos de irmão entrevistados que compartilham do mesmo ambiente anterior e atual, cada um possui uma experiência, uma expectativa e uma forma de empregar os significados ao seu contexto. Quando comparada a resposta de Sophia (dez anos) que diz, “eu me sinto culpada porque eu não cuidei direito dos meus irmãos. Minha mãe e meu pai não cuidou direito da gente. E eu tenho culpa porque não prestei atenção no que eles falavam e no que brigavam com a gente.”, com a resposta do seu irmão Rafael (seis anos), “não! Eu gosto de ficar aqui!”; percebe-se como cada um pessoa é única e conta com mecanismos próprios para a assimilação da realidade. 77 De acordo com Rossetti-Ferreira (2004, p. 17), O requerer e depender por longo tempo de outros para sobreviver e tornar-se uma pessoa faz do humano um ser dialógico por natureza. Essa dialogia, essa necessária relação com os outros, é concebida como atravessada pela linguagem, pela cultura e pela interpretação que uma pessoa faz de outra e da situação. Como os parceiros de interação são vários, assim como são variados os papeis ou as posições que atribuem ou assumem um em relação ao outro, múltiplas são as interpretações da pessoa para o mundo e do mundo para a pessoa. Isso possibilita a construção de sentidos diversos e até mesmo contraditórios a respeito de um mesmo fenômeno ou de uma mesma situação. Para que o acolhimento institucional em abrigos possa de fato se constituir como um fator de proteção no desenvolvimento de crianças em situação de vulnerabilidade, é imprescindível que essa medida tenha de fato um caráter excepcional e provisório. Visto que o abrigo é uma instituição de acolhimento de alta complexidade, essa medida deve ser adotada em última instância e no que tange a permanência, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que a necessidade de permanência da criança no serviço de acolhimento seja reavaliada até o prazo máximo de seis meses, a fim de que não se prolongue por mais de dois anos, exceto nos casos em que seja comprovada a necessidade que atenda ao superior interesse da criança, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária. Essa situação está distante do ideal no dia a dia das instituições, logo, para que seja possível o cumprimento da determinação do ECA, é necessário repensar as estratégias de acompanhamento e reinserção familiar, tanto nas famílias de origem quanto em famílias adotivas. Diante da impossibilidade de excluir a família e demais pessoas com vínculos de parentesco, se ver como necessário o desenvolvimento de programas direcionados a essas famílias, que sejam realmente capazes de avaliar suas fragilidades e oferecer alternativas de superação e de enfrentamento das dificuldades, fortalecendo-as no sentido de que possam cumprir seu papel de mantenedora e cuidadora (SIQUEIRA; ABAID & DELL’AGLIO, 2012). 78 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS A criança, o abrigo e a família, um emaranhado de histórias e expectativas. O acolhimento em instituições de alta complexidade é um limiar entre a proteção e a consolidação de um grupo de crianças que estão crescendo institucionalizadas e com poucas possibilidades de convivência familiar, seja por intermédio da adoção ou da reinserção. Fazer valer as medidas de proteção estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), proporcionando o acolhimento em abrigos, casas de passagem e casa lar, é garantir em muitos dos casos os fatores de sobrevivência mínima de menores em todo o país. Todavia, o que está codificado no ECA se distancia da realidade de muitas das instituições que oferecem esse tipo de acolhimento. São asseguradas as condições de alimentação, vestimento, higiene, moradia e inclusão em unidades escolares, mas pouco é feito para o atendimento às demandas emocionais dos envolvidos no processo de acolhimento. Há uma lacuna no entendimento global da criança acerca da sua situação atual e perspectivas de futuro, e esta lacuna gera consequências para o desenvolvimento efetivo que se realiza no ambiente e nas experiências vivenciadas. Assim como a família representa uma estrutura desenvolvimental, no momento em que a criança passa por um processo intenso de mudança e é inserida na política de acolhimento institucional, o abrigo passa a ocupar esta estrutura. O desenvolvimento humano distingue-se pela interatividade entre os processos de mudança e de continuidade ao longo das várias fases do ciclo de vida. Na perspectiva da teoria bioecológica de Bronfenbrenner (1996; 2005), a continuidade e a mudança ocorrem não só no próprio indivíduo, mas também no grupo social e na cultura em que está inserido, sendo que a própria passagem do tempo também se configura como um elemento de mudança. Contudo, para se ultrapassar os momentos de descontinuidade ao longo do processo de desenvolvimento (a exemplo da retirada do ambiente familiar e acolhimento em abrigo) é imprescindível que certas características se mantenham estáveis. Vale ressaltar que o estabelecimento do vínculo, de uma relação afetiva estável e contínua, pode ser concebido como o 79 principal elemento de superação dos problemas ocasionados ao longo de rupturas e transições. É através da mediação com os adultos que os processos psicológicos mais complexos tomam forma. Inicialmente, esses processos são interpsíquicos (partilhados entre pessoas), isto é, funcionam durante a interação das crianças com os adultos; à medida que a criança cresce, os processos tornam-se intrapsíquicos. Referência? Portanto, as crianças possuem características próprias à sua fase de desenvolvimento, o que não as tornam menos competentes enquanto atores sociais nem seres incompletos ou imperfeitos, mas caracterizam elementos configuradores de um grupo singular na existência humana. Sobre isso, Oliveira (2002, p. 72) destaca que: A percepção das crianças enquanto Outros é o reconhecimento destas enquanto sujeitos singulares que são; completos em si mesmos; pertencentes a um tempo/espaço geográfico, histórico, social, cultural que consolida uma sociedade específica, onde meninos e meninas de pouca idade são simultaneamente detentores e criadores de história e cultura, com singularidades em relação ao adulto. Sujeitos de pouca idade sim, mas que lutam através de seus desenhos, gestos, movimentos, histórias fantásticas, danças, imaginação, falas, brincadeiras, sorrisos, caretas, choros, apegos e desapegos e outras tantas formas de ser e de expressar-se pela emancipação de sua condição de silêncio. Dentro desse universo, a família exerce uma influência direta e intensa, tanto no aspecto favorável ao desenvolvimento global da criança quanto no aspecto prejudicial e desmotivador. Pereira-Silva (2003, citado por Silva et al, 2008) considera que: as interações estabelecidas no microssistema família são as que trazem implicações mais significativas para o desenvolvimento da criança, embora outros sistemas sociais (ex.: escola, local de trabalho dos genitores, clube) também contribuam para o seu desenvolvimento. O impacto gerado pela influência da família se consolida por ela funcionar como um tipo especial de sistema com características peculiares, tais como: 1) estrutura – padrões de interações recorrentes e previsíveis que refletem as filiações, tensões e hierarquias sociais; 2) padrões – definem os caminhos que a família utiliza para tomar decisões e controlar o comportamento de seus membros; 3) propriedades que organizam a estabilidade e a mudança (Silva et al, 2008). 80 Como foi observado nesse estudo, as experiências vivenciadas por muitas crianças nesse sistema não são representativas de um ambiente familiar adequado e seguro; elas sofrem diversos tipos de violência (física, psicológica e moral) que comprometem o seu desenvolvimento. Barnett (1997, apud Maia e Williams (2005) assegura que nenhum outro fator de risco tem uma associação mais forte com a psicopatologia do desenvolvimento do que uma criança maltratada, ou seja, o abuso e a negligência causam efeitos profundamente negativos no curso de vida da criança. As sequelas do abuso e da negligência abrangem grande variedade de domínios do desenvolvimento, incluindo as áreas da cognição, linguagem, desempenho acadêmico e desenvolvimento social. As experiências vivenciadas e internalizadas no meio familiar funcionarão como elementos norteadores no comportamento e nas construções de objetivos e metas de vida. Na ausência de um mecanismo de controle familiar eficaz, que priorize a conduta ética e moral, os indivíduos tendem a perder a noção de limite e a ultrapassar as barreiras que garantem a boa covivência, o que trará reflexos para a sociedade e provavelmente, em algum momento, necessitará da intervenção do Estado como um regulador social. Em sintonia com os dados do relatório emitido pela Comissão da Infância e Juventude do Conselho Nacional do Ministério Público (2013) em que apenas 25% das crianças abrigadas no Brasil são órfãs, todas as crianças constantes no universo desse estudo, bem como as demais que estão sendo acolhidas na instituição loco da pesquisa, possuem família residente na mesma cidade, mesmo não recebendo visita com frequência ou contando com alguma iniciativa efetiva da família no sentido de obtenção da guarda do menor. Falando especificamente dos resultados obtidos no período de coleta de dados, a família, seja nuclear ou extensa, está presente no imaginário e na expectativa de retorno à convivência diária dos menores. As situações de violência, negligência, abandono e abusos, apesar de ser nociva ao desenvolvimento global da pessoa humana, quando impetradas por pai, mãe, avós e demais pessoas significativas para a criança, criam uma atmosfera mítica que envolve amor e ódio, medo e esperança de retornar ao seu lar, bem como a 81 certeza de se contar com as condições mínimas para sobrevivência em contrapartida com a angústia gerada pelas diversas rupturas e ausências. A dicotomia de sentimentos e sensações recorrentes dessa situação remete à constante busca pelo pertencimento e retorno às origens, bem como à presença da lealdade familiar como mecanismo de tentativa de ressignificação e/ou reconciliação com a sua própria história. A criança no abrigo, apesar do afastamento imposto pelas condições anteriores da convivência, se mantém ligada às suas lembranças e percepções relacionadas à sua família de origem. Ela busca respostas e justificativas para o seu afastamento, fantasia a realidade, sendo que com a passagem do tempo e o afastamento contínuo das pessoas que faziam parte do seu meio familiar e social, os dados reais bem como a sua própria história vão se tornando inacessíveis, envoltos em uma atmosfera nebulosa de incertezas. É incontestável que a família existe para a criança, no entanto, a partir dos dados obtidos ficam os seguintes questionamentos: quando foi que a criança deixou de existir para a família? Por que diante das dificuldades dos genitores em manterem o cuidado dos seus filhos não há a presença de outro familiar que assuma o cuidado e/ou mantenha o interesse à convivência da criança abrigada? Quais são os fatores presentes na desobrigação que a família manifesta diante da consolidação do acolhimento? Tendo em vista que a maioria das crianças institucionalizadas possui família e amplo número de parentesco, se vê como imprescindível a efetivação e acompanhamento de mais programas que beneficiem à reinserção, efetivando o direito à convivência familiar e comunitária tal como previsto em lei. Realizar essa pesquisa nos proporcionou adentrar em um universo delicado do acolhimento institucional a partir da perspectiva da criança, sendo convidadas a conhecer as suas angústias e expectativas. No mesmo movimento de evolução do estudo, também foi evoluindo o nosso olhar e aprendizados que estão além das ideias pré-estabelecidas nos livros e manuais acadêmicos. Percebemos a necessidade de buscar respostas que preencham uma nova lacuna que se materializou nas falas e pensamentos e se relaciona com a “família dos ‘sem’ família”, ficando o seguinte questionamento: em que momento a criança 82 abrigada deixa de existir na família extensa? Novos estudos devem ser realizados para que esta pergunta seja esclarecida e novas formas de intervenção sejam estabelecidas. Por fim, os resultados aqui alcançados, por refletirem a realidade advinda das crianças, possibilitará o avanço nas discussões, pesquisas e estratégias de enfrentamento para uma melhor adequação dos serviços de acolhimento institucional. Consideramos também a aplicabilidade do livreto “Ei! Estamos Aqui”, elaborado como o instrumento de coleta de dados, para ser utilizado como um recurso de acompanhamento de crianças abrigadas em uma proposta de intervenção psicossocial. 83 REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Tradução de Dora Flaksman. RJ: LTC, 1981. BATISTA PINTO, Elizabeth. A pesquisa qualitativa em Psicologia Clínica. Psicol. USP, São Paulo, v. 15, n. 1-2, June 2004. Available from . access on 07 Mar. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65642004000100012. BAUER, Martin W. & GASKELL, George. 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Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000. 89 APÊNDICES APÊNDICE A – INQUÉRITO SITUACIONAL Página 1 de 2 INQUÉRITO SITUACIONAL DADOS DA CRIANÇA Código de identificação:_____________________________________________________ Data de Nascimento:__/__/__ Escolaridade:_____________________ Sexo: ( ) M ( ) F Oriunda de qual localidade?_______________________ Filiação registrada: ( ) mãe ( ) pai IDENTIFICAÇÃO DO FUNCIONÁRIO RESPONSÁVEL PELAS RESPOSTAS Código de identificação:____________________ Função:_________________________ DADOS GERAIS Data de entrada da criança no abrigo: ___/___/___ Quantidade de irmãos no abrigo:______ Idade dos irmãos: ______________________ Encaminhado por:__________________________________________________________ Motivo(s) desencadeante(s) do acolhimento: _____________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ Ações e procedimentos adotados pela Instituição no momento de acolhida dessa criança:__________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ Rotina da criança no abrigo (tipo de atendimentos/acompanhamento realizados, frequência na escola, atividades, etc.): ___________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ A criança está disponível para adoção? ( ) Sim ( ) Não A criança recebe visita da família nuclear (pai, mãe e irmãos) e/ou extensa (avós, tios, primos e etc.)? (Em caso positivo, informar o nome do visitante, o grau de parentesco e a frequência das visitas) _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ A família manifesta desejo em obter a guarda da criança? (Em caso positivo, informar o nome do interessado e o grau de parentesco) _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ Foram realizados acompanhamento e/ou encaminhamentos para essa família? (Em caso positivo, informar o tipo de acompanhamento e/ou encaminhamento) _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ 90 Página 2 de 2 COMPORTAMENTO DA CRIANÇA NA INSTITUIÇÃO Mantém boa convivência com os colegas? ( ) Sim ( ) Não Mantém bom relacionamento com os funcionários? ( ) Sim ( ) Não Pergunta sobre a família? ( ) Sim ( ) Não Quem? ________________________________ Manifesta vontade de retorna à convivência com a família de origem? ? ( ) Sim ( ) Não Quem? ______________________________________ Manifesta vontade de ser adotado? ? ( ) Sim ( ) Não Apresenta: ( ) choro fácil ( ) timidez ( ) dificuldades para se expressar ( ) isolamento ( ) agitação motora ( ) conta mentiras ( ) ansiedade ( ) tristeza ( ) comportamento agressivo Qual?___________________________________ ( ) medos Quais?________________________________________________ ( ) Terror noturno Como é? ________________________________________ ( ) Tiques e manias Qual tipo?______________________________________ ( ) Dificuldade de aprendizagem Qual? _______________________________ ( ) Deficiência física Qual? ________________________________________ ( ) Dificuldade no controle dos esfíncteres Qual?________________________ ( ) Dificuldade na alimentação Qual?_________________________________ ( ) Problemas de saúde Qual? _____________________________________ ( ) Necessidade de acompanhamento especializado Tipo? ________________ _______________________________________________________________ ( ) Uso de medicamento Qual(is)? ___________________________________ ________________________________________________________________ Tem algum dado que considere importante e que não foi perguntado? _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________ Salvador/BA, ____/ ____/______ Assinatura do pesquisador:___________________________________________________ 91 APÊNDICE B: ENTREVISTA LÚDICA PARA CRIANÇA 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 108 109 APÊNDICE C - TERMOS DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Título do Projeto: A criança abrigada e a sua família Pesquisador Responsável: Lorena Márcia Nascimento Cardoso_______________ Instituição a que pertence o Pesquisador Responsável: Universidade Católica do Salvador - UCSAL Telefones para contato: (71) 9277-4644 E-mail: psi.lorena@yahoo.com.br O Sr. (ª) está sendo convidado(a) a participar da pesquisa “A criança abrigada e a sua família”, de responsabilidade da pesquisadora Lorena Márcia Nascimento Cardoso, para dissertação de mestrado em Família na Sociedade Contemporânea, da Universidade Católica do Salvador - UCSAL. No Brasil, cerca de 20 mil crianças e adolescentes vivem em 589 abrigos cadastrados na Rede SAC (Serviço de Ação Continuada) do Ministério do Desenvolvimento Social. Esse índice é agravado na medida em que se percebe que a realidade de estadia nas casas de passagem varia significativamente, pois muitas crianças não são retiradas dessas instituições, seja por uma questão burocrática ou por dificuldade de inclusão em uma família adotiva, elas acabam permanecendo na casa de passagem até findarem a adolescência, ocorrendo um processo de institucionalização que acaba gerando a consolidação de um grupo de crianças e adolescente muitas vezes ignorados, envoltos em uma condição socioeconômica e psíquica desprivilegiada e insalubre. Diante de tal realidade, o estudo aqui proposto tem como objetivo central compreender a percepção que crianças atendidas em abrigos têm em relação ao seu contexto familiar e à sua permanência na instituição. O método adotado para a pesquisa será o qualitativo, visto que o estudo proposto busca a análise relativa à construção da subjetividade dessas no que tange a compreensão das suas particularidades relacionadas à situação de abrigamento e rupturas dos vínculos familiares. Os dados primários serão, inicialmente coletados mediante a aplicação de um roteiro de entrevista semi- estruturado que contempla perguntas fechadas e abertas, o Inquérito Situacional com o funcionário indicado pelo abrigo, no qual serão colhidas informações sobre a criança, a sua família, os motivos que geraram o encaminhamento para o abrigo e 110 ações da instituição no acompanhamento das crianças em estudo. Em um segundo momento, será realizada individualmente uma entrevista lúdica semi-estruturada com as crianças selecionadas, onde será abordado o contexto familiar, a sua acolhida e permanência no abrigo e as suas perspectivas em relação à situação em que se encontra. O estudo seguirá as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Resolução 466/12), do Conselho Nacional de Saúde. Em atendimento à referida Resolução, a participação na pesquisa é voluntária e este consentimento poderá ser retirado a qualquer tempo, sem prejuízos e estão garantidas a confidencialidade das informações geradas e a privacidade do sujeito da pesquisa. Eu, ______________________________________________________________, portador(a) do RG nº _____________________ funcionário indicado pelo abrigo voluntário, declaro ter sido informado e concordo com a minha participação, como voluntário, no projeto de pesquisa acima descrito. Salvador/BA , _____ de _____________ de 2014 ___________________________________ Assinatura do voluntário _______________________________ Lorena Márcia Nascimento Cardoso Pesquisadora responsável 111 TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Título do Projeto: A criança abrigada e a sua família Pesquisador Responsável: Lorena Márcia Nascimento Cardoso_______________ Instituição a que pertence o Pesquisador Responsável: Universidade Católica do Salvador - UCSAL Telefone para contato: (71) 9277-4644 E-mail: psi.lorena@yahoo.com.br O abrigo no qual o Sr. (ª) é responsável, está sendo convidado a participar da pesquisa “A criança abrigada e a sua família”, de responsabilidade da pesquisadora Lorena Márcia Nascimento Cardoso, para dissertação de mestrado em Família na Sociedade Contemporânea, da Universidade Católica do Salvador - UCSAL. No Brasil, cerca de 20 mil crianças e adolescentes vivem em 589 abrigos cadastrados na Rede SAC (Serviço de Ação Continuada) do Ministério do Desenvolvimento Social. Esse índice é agravado na medida em que se percebe que a realidade de estadia nas casas de passagem varia significativamente, pois muitas crianças não são retiradas dessas instituições, seja por uma questão burocrática ou por dificuldade de inclusão em uma família adotiva, elas acabam permanecendo na casa de passagem até findarem a adolescência, ocorrendo um processo de institucionalização que acaba gerando a consolidação de um grupo de crianças e adolescente muitas vezes ignorados, envoltos em uma condição socioeconômica e psíquica desprivilegiada e insalubre. Diante de tal realidade, o estudo aqui proposto tem como objetivo central compreender a percepção que crianças atendidas em abrigos têm em relação ao seu contexto familiar e à sua permanência na instituição. O método adotado para a pesquisa será o qualitativo, visto que o estudo proposto busca a análise relativa à construção da subjetividade dessas no que tange a compreensão das suas particularidades relacionadas à situação de abrigamento e rupturas dos vínculos familiares. Os dados primários serão, inicialmente coletados mediante a aplicação de um roteiro de entrevista semi- estruturado que contempla perguntas fechadas e abertas, o Inquérito Situacional com o funcionário indicado pelo abrigo, no qual serão colhidas informações sobre a criança, a sua família, os motivos que geraram o encaminhamento para o abrigo e ações da instituição no acompanhamento das crianças em estudo. Em um segundo momento, será realizada individualmente uma entrevista lúdica semi- estruturada com as crianças selecionadas, onde será abordado o contexto familiar, 112 a sua acolhida e permanência no abrigo e as suas perspectivas em relação à situação em que se encontra. O estudo seguirá as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Resolução 466/12), do Conselho Nacional de Saúde. Em atendimento à referida Resolução, a participação na pesquisa é voluntária e este consentimento poderá ser retirado a qualquer tempo, sem prejuízos e estão garantidas a confidencialidade das informações geradas e a privacidade do sujeito da pesquisa. Eu, ______________________________________________________________, presidente do abrigo voluntário, declaro ter sido informado sobre o estudo e concordo com a participação voluntária do(a) menor____________________________________________________________, se assim ele(a) desejar, no projeto de pesquisa acima descrito. Salvador/BA , _____ de _____________ de 2014 _____________________________ Assinatura do Representante do Abrigo _________________________________ Lorena Márcia Nascimento Cardoso Pesquisadora responsável 113 TERMO DE ASSENTIMENTO Título do Projeto: A criança abrigada e a sua família. Pesquisador Responsável: Lorena Márcia Nascimento Cardoso_______________ Instituição a que pertence o Pesquisador Responsável: Universidade Católica do Salvador - UCSAL Telefone para contato: (71) 9277-4644 E-mail: psi.lorena@yahoo.com.br Você está sendo convidado(a) a participar da pesquisa “A criança abrigada e a sua família”, de responsabilidade da pesquisadora Lorena Márcia Nascimento Cardoso, para dissertação de mestrado em Família na Sociedade Contemporânea, da Universidade Católica do Salvador - UCSAL. Essa pesquisa tem como objetivo central compreender a percepção que crianças atendidas em abrigos têm em relação à sua família e o abrigo onde está atualmente. Portanto, queremos saber a sua opinião. Você participará de uma entrevista, onde juntos construiremos um livro ilustrativo, e no final da pesquisa você receberá o kit utilizado em sua entrevista, contendo o classificador, o livro ilustrativo que foi confeccionado por você, uma caixa de lápis de cor, um lápis comum e uma borracha. Para participar deste estudo, o responsável por você deverá autorizar e assinar um termo de consentimento. Você não terá nenhum custo, nem receberá qualquer vantagem financeira. Você será esclarecido(a) em qualquer aspecto que desejar e estará livre para participar ou recusar-se. O responsável por você poderá retirar o consentimento ou interromper a sua participação a qualquer momento. A sua participação é voluntária, isso quer dizer que você não precisa participar desta pesquisa se não quiser, é você quem decide. Se decidir não participar da pesquisa, é seu direito e nada mudará no seu dia a dia aqui no abrigo ou na maneira como o pesquisador irá te tratar. Você também poderá mudar ideia a qualquer momento, mesmo se disser "sim " agora. Não falaremos para outras pessoas que você está nesta pesquisa, será mantido o sigilo, qualquer informação sobre você terá um código ao invés de seu nome. Você também não será identificado(a) em nenhuma publicação que venha a ser produzida. Você poderá a qualquer momento solicitar informações e explicações acerca do estudo e, caso você se sinta desconfortável, preocupado(a) ou com perguntas, você deverá se sentir à vontade para me chamar a qualquer momento para falar sobre suas preocupações, perguntas ou o que esteja sentindo. 114 Este termo de assentimento encontra-se impresso em duas vias, sendo que uma cópia será arquivada pelo pesquisador responsável, e a outra será fornecida a você. Eu, _________________________________________________________________, portador(a) do documento de Identidade ____________________ (se já tiver documento), fui informado(a) dos objetivos do presente estudo de maneira clara e detalhada e esclareci minhas dúvidas. Sei que a qualquer momento poderei solicitar novas informações, e o meu responsável poderá modificar a decisão de participar se assim o desejar. Declaro que concordo em participar desse estudo. Recebi uma cópia deste termo assentimento e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as minhas dúvidas. Salvador/BA , _____ de _____________ de 2014 _______________________________ Assinatura da Criança ou Digital _______________________________ Lorena Márcia Nascimento Cardoso Pesquisadora responsável